sábado, 11 de fevereiro de 2017

MDNA


A musica rompeu a hegemonia do cinema como à forma de arte mais apreciada em todo e mundo sublinhando os limites deste quanto ao seu papel na emergente cultura de identidade urbana. Estamos em plena década de 80 dominada pelos agitos da disco music. Nas mais de mil danceterias espalhadas pelo centro da velha e falida metrópole de Nova Iorque as noites eram embaladas por musicas como “That´s the way” de KC e The Sunshine Band e “Stayin Alive” do Bee Gees.
Jeans desbotados e rasgados nos joelhos, jaquetas de couro, cabelos rebeldes domados por lenços coloridos e combinações destoantes era o que se via de mais comum. Pulseiras e correntes simbolizavam a agressividade juvenil acentuando o rompimento espontâneo para com as tradições familiares das décadas anteriores.
A noite era o berço da diversão, dos encontros, da troca de sensações, hora de exorcizar os demônios nas pistas de dança e saturar o espírito com aquilo que a vida tinha a oferecer aos jovens amantes da musica. Era nas ruas que o aspecto mais relevante da revolução cultural podia ser visualizado como algo puramente simbólico e de certa forma alegórico: a valorização da identidade individual em detrimento dos valores sociais coletivos.
Existem aqueles que enxergam no período uma evidente manifestação de fragmentação social, no entanto os termos aqui analisados, quando planamente compreendidos, demonstram que a sociedade se tornava mais organizada à medida que se diversificava. Essa diversificação ocorria sob uma forte tensão provocada e alimentada pela busca de elementos que sinalizassem as incongruências culturais de cada tribo urbana. Era importante delimitar o tipo de comportamento a partir das roupas. Estamos numa década onde você é o que você veste! Foi nesse meio que o furacão Madonna conquistou seu espaço sinalizando em seu corpo as marcas de seu tempo.
Who s that Girl? Quem era aquela garota que na adolescência não exalava carisma suficiente para permitir que se projetasse sobre si a imagem de futura super star? Quem era aquela garota magrela e baixinha que entre os exaustivos ensaios das aulas de dança tentava ganhar a vida como garçonete ou posando para fotos nuas como modelo de artistas plásticos? Seu passado comum tão pouco oferece uma explicação para o seu sucesso. Ela teve uma infância e uma adolescência sem eventos significativos, traumáticos sem duvida, mas nada que a coloque a margem de boa parte dos seres humanos.
Durante as noites Madonna se divertia dançando em boates gays – universo pelo qual já nutria fascinação. Nessa atmosfera receptiva as novas formas de “espontaneidade representativa” ela explorou sua bissexualidade, jogou fora a cartilha de idéias pré-fabricadas pelos costumes, destilou o naturalismo que existe por trás da auto-satisfação, reafirmou conceitos pouco ortodoxos, buscou a todo custo sua autopromoção sem se importar com valores morais. Cometeu erros e exageros, mas no fim acabou se aventurando pelas vias do sucesso.
Filha de imigrantes italianos e nascida em um meio impregnado pela força dogmática do catolicismo, Madonna havia perdido a mãe muito cedo. A experiência da perda moldou em sua personalidade uma aversão a fraqueza e fez com que encontra-se na dança uma perfeita forma de expressão para sua força. Aprendeu a esconder sua fragilidade por trás da imagem de mulher forte e dominadora, algo que lhe permitiu desfrutar de uma forma de independência que pode ser descrita como um fragmento que se desprende do conceito de liberdade. Passou a valorizar o estado de alerta constante e dizia que a tranqüilidade de espírito era uma “pequena morte”. Possuía um forte instinto de independência através do qual e deu forma a sua própria escala de valores e se orientou por seus próprios caminhos.
Madonna havia se preparado para perseguir seus desejos só não havia se preparado para pagar o preço. O que sua intempestividade juvenil não esperava encontrar em seu caminho era uma forma particular e brutal de violência contra seu sexo: certo dia ela encontrou as portas do local onde fazia suas aulas de dança fechadas e acabou sendo arrastada para o terraço de um dos prédios e violentada por um homem que poucos minutos antes havia lhe oferecido ajuda. O episodio sinaliza uma fase de transição em sua história. Aos poucos a dança perdeu seu encanto e o caminho para a afirmação no meio musical começou a se mostrar mais atraente.
Em “Madonna 50 anos” a autora Lucy O’Brien reconstrói os passos de uma das maiores estrelas da musica internacional. A garota ousada que chegou a Nova Iorque sozinha aos 19 anos com o sonho de se tornar bailarina foi aos poucos se apaixonando pelos clubes noturnos undergrounds e pelo estilo punk. “Ela é uma mulher de carne e osso, mas sua identidade mutante fez dela um quebra cabeças.” - escreveu Lucy O’Brien cujo mérito como escritora se deve a sua forma de abordagem: analisar a figura humana a partir de sua obra.
Segundo a autora, Madonna só se revela com sua configuração original durante seu trabalho, pois seria o único momento onde a hiper-conciência de sua própria imagem estaria ausente e seu pensamento estaria focado para fora dos limites dela mesma. Talvez seja esse o motivo que ela tenha optado por contar a historia do fenômeno pop de forma cronológica tendo suas musicas como marcações da passagem de tempo.
Em primeiro lugar e preciso definir que Lucy O’Brien é uma admiradora de Madonna, logo é natural que o texto de sua obra coloque em evidencia a figura da artista e defina suas musicas como um produto da assimilação de sua vida particular com as imperiosas determinações da fama. Nessa obra a estrela pop esta em maior destaque que a mulher por trás dela. O mérito desse tipo de foco e sua tendência natural de deixar de lado os boatos que sempre adornam figuras famosas e se concentrar nos fatos.
Madonna alcançou o sucesso desconstruindo idéias e articulando sua musica por meio dos seus sentimentos. Talvez o seu mais significativo salto de maturidade tenha ocorrido quando ela tinha apenas 15 anos. A vida como líder de torcida e a popularidade que vinha no rastro da “função” não mais saciavam suas ambições. O estilo adolescente de viver a margem do mundo adulto foi deixado para trás, e junto com seu interesse pela arte e pelo bale surgiu a fascinação pela dança. Christopher Flynn foi uma figura importante nessa fase de sua vida.
Chega a ser uma tarefa complexa definir até que ponto determinada musica ou álbum foi fruto da influência das tendências musicais do momento ou se foi algo puramente expressivo. Fica bastante evidente que seu trabalho é um misto de espontaneidade e planejamento. Definir o grau de influência entre um e outro é talvez a questão que a torna tão interessante como artista. Encarar o “fenômeno Madonna” como uma conjunção originaria de aspectos binários é de determinada forma algo não apenas irrelevante como também redundante afinal de contas existe algo verdadeiramente original no campo da arte que não possua certa dose de espontaneidade? Madonna sempre se mostrou tão espontânea que parece errado querer imprimir grande significado a sua obra.
Devo confessar que o texto de O’Brien me cativou logo nas primeiras paginas. A narrativa ágil da infância de Madonna logo cede espaço para o ponto mais interessante de sua historia: seus anos difíceis na falida e caótica Nova York dos anos 80. Para qualquer um que conheça a história de Madonna fica claro que a década de 80 foram seus anos gloriosos, embora tenha nesse período disputado seu espaço com outros grandes astros do pop.
A obra é não apenas uma biografia da artista, mas também de suas musicas. Um trecho interessante explica como Like a virgin se tornou um grande sucesso:
“Se você ouvir a bateria de Like a virgin vai perceber que é gorda, larga e espaçosa. Ela preenche o som da canção. Se tivesse sido feito diferente, a musica teria perdido autoridade. Sabíamos como o som mexeria com o publico de maneira subliminar – E muito do que nos atrai na musica está na persistência com que ela se agarra ao subconsciente.”
O álbum Like a virgin foi lançado em novembro de 1984. Esse talvez tenha sido o trabalho de Madonna que mais probabilidade teve de fracassar devido à mudança no estilo em relação ao seu trabalho anterior e também por ter sido lançado em um momento onde o mercado musical era dominado por artistas como Michael Jackson – que reinava absoluto com Thriller – e Prince que com o sucesso de Purple Rain ganhava cada vez mais destaque.
O mercado musical também enfrentava crises devido à redução do numero de adolescentes. À medida que a população envelhecia e os adolescentes se tornavam adultos as vendas de singles despencavam. Aquele era sem duvida um momento difícil para a carreira de qualquer artista. O funil provocado pela concorrência e pelo mercado em crise funcionou como uma espécie de seletor de astros. Foi nesse contexto que a MTV surgiu como um dos mais significativos meios de comunicação. Madonna se apoiou nessa crescente indústria de vídeo clipes e teve o mérito de saber usar sua sensualidade e desenvoltura em proveito próprio. Ela conseguiu direcionar a critica para além de seus limites vocais – algo da qual era plenamente consciente. A dança deu a ela uma noção valiosa quanto ao ritmo e seu visual diferenciado foi um prato cheio para a indústria de videoclipes da época.
Ela possuía estilo e um visual bastante favorável a comercialização, assim como sua mais forte concorrente: a lenda pop dos anos 80 Cindy Lauper que com os sucessos “Girls Just want to have fun” – cuja letra consiste num autêntico retrato dos desejos femininos do período – “True Color” e a imbatível “Time after Time”. Talvez seja mais claro identificar Cindy Lauper como sua mais significativa concorrente pelo fato de ambas imprimirem através de sua imagem e suas musicas a mesma proposta de transgressão e repudio ao conservadorismo.
Até que ponto seu engajamento político das ultimas décadas se contrastava com a aparente esterilidade política de suas musicas nos seus primeiros anos de carreira? Se considerarmos que suas musicas possuem uma mensagem fortemente carregada pelos sentimentos femininos veremos que desde o inicio sua musica carrega um certo posicionamento político na medida que ela propõe uma nova postura - sobretudo da população feminina - ao mesmo tempo que se constrói como um ícone capaz de moldar opiniões, embora essa não fosse sua intenção.
Madonna vivia o auge da geração Yuppie deflagrada pela era do neoliberalismo de Ronald Regan. Impostos reduzidos se traduziam em menos responsabilidade social por parte do governo, ambiente perfeito para o espírito empreendedor. Não é sem motivo que a ambição se tornou característica positiva para os jovens ávidos por ascensão social. Interessante ver que Madonna não confrontou os valores sociais desse período, pelo contrario até se identificou com eles... até compor Material Girl.
O sucesso de Material Girl fez com que a musica se consagrasse como um hino pop contrario a personalidade materialista, porem Dress you Up coloca em relevo a mesma questão de forma muito mais competente. A letra faz uma comparação entre as sensações experimentadas por aquilo que o dinheiro podia comprar, no caso roupas luxuosas, e aquilo que só se podia ser sentido através do afeto. As fortes batidas isoladas na introdução e que permanecem praticamente inalteradas preenchendo a canção conferem a esta um ritmo que acaba reforçando o vigor da letra.
Criticada por sua postura nada comum, contestada por suas opiniões, admirada por sua obra, imitada em seu estilo, odiada e de certa forma temida por sua ousadia. Modonna é talvez a celebridade que mais acumula conceitos. Ela cumpriu bem seu papel como representante de uma forma contemporânea de arte cuja construção se funde num misto de linguagem corporal e arranjo musical. Ela escapa a compreensão porque se reinventou de uma forma que sua postura e sua opinião não fizessem paralelo nos costumes. Nunca se posicionou a margem de seu mundo, sempre buscou o ângulo através do qual pudesse impactá-lo.
Sua natureza fortemente criativa e sinalizada por um de seus aspectos mais característicos: a tendência de se reinventar constantemente. O método caiu perfeitamente ao “estilo Madonna”, pois à medida que buscava uma nova imagem para si própria ela alimentava a figura da mulher forte e dominadora – algo que fazia questão de reafirmar constantemente – que não acompanhava as tendências, mas que as criava. “Eu não defendo um estilo de vida eu descrevo um”- disse ela durante uma entrevista coletiva.
Madonna que sempre soube usar o poder da linguagem corporal tinha consciência do papel do olhar como parte da expressão dos sentimentos. “True Blue” – escrita por ela e dedicada ao seu marido, na época o ator Sean Pen - faz uma alusão a cor dos olhos de Pean como um espelho de seus sentimentos verdadeiros. True Blue (Azul verdadeiro) tornou-se o álbum mais vendido no mundo em 1986. Lançado no mês de junho daquele ano ele enfrentou a concorrência direta do álbum True Color (Cores Verdadeiras) de Cindy Lauper, lançado apenas três meses depois.
Like a Prayer, o terceiro álbum de estúdio de Madonna, lançado por ocasião dos seus trinta anos, marca uma fase angustiante de sua vida. O álbum deve seu sucesso à forma sabia com a qual ela soube colocar seus sentimentos em paralelo ao momento econômico dramático da política neoliberal do presidente Ronald Regan. A ideia era se afastar da imagem pop vibrante de seu álbum anterior “True Blue” e mergulhar numa atmosfera angustiante sinalizada pelos cabelos castanhos e por vocais densos. Era o inicio de uma nova fase o que para Madonna não configurava um desafio uma vez que se trata de alguém acostumada a criar diferentes versões de si mesma.
“Like a Prayer” retoma a linguagem de “True Blue” sob uma perspectiva menos glamourosa e, portanto se caracteriza como uma projeção complementar do trabalho anterior. Essa perfeita transição entre duas fases marcantes de sua carreira é o que torna “Like a Prayer” o seu trabalho mais admirável e mais próximo de uma autêntica forma de arte, pois é nele que Madonna deposita a mais significativa carga emocional. Suas musicas exalam sentimentos que se constroem por meio da junção de uma sonoridade angustiante e de uma composição carregada de reflexão e confissão, tudo isso sem o toque maçante do recurso trágico. Dessa forma ela não apenas encerrava um capitulo de sua biografia como também reafirmava sua postura dominadora.
“Spanish eyes” é uma das mais marcantes faixas do álbum. Carregada de sentimentos a letra fala sobre a busca de consolo na fe como alivio para a dor produzida pela saudade. Em determinado momento da letra ela deixa claro o papel de sua musica como parâmetro de compreensão para seus sentimentos.
A extensão mais evidente de “True Blue” em “Like a Prayer” e a canção “Cherish” cuja letra foge dos temas mais densos das demais faixas do álbum. Enquanto “Cherish” configura uma projeção de “True Blue”, “Live to tell” é uma antecipação dos rumos tomados em “Like a Prayer”. Essa dupla conexão entre os trabalhos reflete a presença do produtor musical Patrick Leonard como co autor em ambos os discos.
Para quem quiser ler mais sobre a vida da cantora Madonna recomendo a leitura de "Madonna 50 anos", um livro cativante desde o seu inicio e recheado de historias sobre essa lenda do pop. Ótima leitura!!
AUTOR
TIAGO R. CARVALHO
Título: Madonna: 50 Anos
Subtítulo: A Biografia do Maior Ídolo da Música Pop
Autor: Lucy O'Brien
Editora: Nova Fronteira
Ano: 2008

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