domingo, 27 de abril de 2014

A TRAGEDIA DO PROGRESSO


“Quanto mais uma figura histórica vai ficando estranha e enigmática, mais claramente delineada se torna sua função sociopsicologica”
– Joachin Fest
“A fim de haver tolerância no mundo, uma das coisas a ser ensinadas nas escolas deve ser o habito de ponderar a evidencia e a pratica de não dar total assentimento a proposições que não haja razão para serem aceitas como verdadeiras.”
- Bertrand Russel
Certa vez ao ler “Moby Dyck”, de Herman Melville, fiquei impressionado com a multiplicidade de significados simbólicos que a obra oferece a um leitor atento. A busca pela baleia cachalote branca, única entre os gigantes mamíferos dos mares, é a expressão do fetiche humano pelo controle daquilo que lhe escapa. Em síntese se trata do retrato da impotência diante da ideia de dominação e do controle daquilo, que de alguma forma, se destaca entre os demais. A obsessão e a busca pelo domínio absoluto são o núcleo fundamental sob o qual se constrói o fanatismo.
A história, assim como a arte dramática, possui protagonistas e antagonistas que se digladiam como um produto das massas. Um fato interessante é que o século XX parece negar a qualquer personalidade histórica o papel de protagonista, já o mesmo não acontece com o seu oposto, que de forma incontestável pertence a Hitler. Se entre os historiadores essa definição não é unanime, do ponto de vista daqueles menos obcecados com uma abordagem pragmática dos eventos históricos, sobretudo dos não alemães, essa definição está mais do que correta. O nível de ascendência moral que Hitler era capaz de exercer sobre as massas está além da compreensão de qualquer pessoa que tenha vivido em uma época diferente da sua. “Ele tinha um poder terrível, especialmente nos olhos.” – comentou o ex-ministro das relações exteriores, Joachin Von Ribentrop, ao ser interrogado pelo psiquiatra da prisão de Nuremberg em 1946.
O mito Hitler se reafirma, ano após ano, graças à brutalidade com que o mesmo representou sua própria história. Aqueles que o consideram apenas como louco ou maníaco só fazem aumentar o grau de fascinação que o mesmo continua a exercer. Como um homem louco seria capaz de arrastar uma nação inteira para o turbilhão irrefreável do caos? Loucos são aqueles que se apegam a crença de que o mal se reveste apenas com o manto da insanidade. Na maioria dos casos e na mente racional e pratica que o mal encontra espaço para seus feitos e evidência sua completa e assustadora banalidade. Hitler é tão complexo e denso que nosso léxico ainda não dispõe de um termo que lhe seja aplicável. “Louco” ainda e o termo mais recorrente quando sua imagem é invocada. No entanto defini-lo como um simples lunático ou demente é não apenas uma representação simplista de uma realidade assustadora como também reduz a importância que o momento histórico, representado pelos doze anos do regime nazista, teve na historia da Europa e do mundo.
Os assassinatos cometidos por ordens suas não foram uma chacina generalizada, mas um evento calculado e planejado de forma tão assustadora que seus resultados ainda permanecem como um exemplo da origem primitiva e animalesca dos seres humanos. Essa imagem de um ditador insano ainda é predominante entre a população, assim como também se tornou costumeiro utilizá-lo como representação inequívoca do mal. Por que é tão difícil imputar a Hitler o rotulo da banalidade? Por que precisamos representar seu ódio e sua violência como exemplo dos extremos da natureza maléfica dos seres humanos? Seria esse comportamento uma negação da imagem pessimista que o filosofo Thomas Hobbes tinha do homem como ser social ou uma simples manifestação do maniqueísmo que se apossou da sociedade e passou a reafirmar insistentemente a amplitude do espaço que separa o “bem” do “mal”?
O nazismo em si possui um conceito tão amplo que inevitavelmente remete ao fracasso qualquer tentativa de encerrá-lo numa única linha de raciocínio. Hitler e o fascismo não são necessariamente sinônimos; o fenômeno político não partilha dos mesmos termos de compreensão do fenômeno humano. O nazismo não possui um fim em si mesmo e, portanto, tentar entender o descalabro de sua política com base na biografia de seu ícone máximo parece ser uma atitude equivocada, uma vez que a compreensão do passado em termos íntimos contraria qualquer abordagem pratica dos fatos históricos. A história não se constrói pelos passos de um único homem, é justamente o homem que se constrói a partir do momento histórico que este se insere. A forma como vemos o mundo que nos cerca determina nossa postura diante dele e não o contrario.
Também é completamente infundada a idéia de que o nazismo emergiu no vácuo da expansão do ateísmo. O filosofo Jean Paul Sartre destruiu a falsa noção de que os valores morais se construíam a partir dos costumes e das crenças religiosas. Os valores seriam determinados pelos próprios indivíduos, a revelia dos aspectos coercitivos de seu meio. Na pratica seria o mesmo que definir o mal como um aspecto marginal da natureza humana. Invocar aspectos religiosos para explicar o terror do nazismo está mais relacionado a uma redefinição do conceito de “mal” do que numa suposta explicação das origens do mesmo.
Não é novidade que o século XX foi o século mais ateu da historia. A progressiva perda de fé pelo homem levou a decadência do método de representação do mal por meio de figuras bíblicas. O demônio, da forma como era descrito nas antigas escrituras, não mais se prestava a sua função como administrador da vontade humana. O mal clamava por uma representação mais tangível e que fosse capaz de reafirmar, de forma literal e não mais abstrata, a verdadeira noção do terror. O ateísmo, no entanto, não ditou sozinho as tendências para a redefinição do conceito de mal. Entre aqueles cuja fé parecia inabalável a própria noção de inferno absorvida das escrituras bíblicas, que descreviam almas sofredoras vagando por mares de enxofre incandescente, era por demais abstrata e tão significativamente inimaginável que não mais servia ao seu propósito original. O verdadeiro inferno precisava de um evento histórico que o representasse e pudesse invocar o real significado dessa palavra na mente predominantemente sujeita as sensações. No século XX, ou mais precisamente no período compreendido entre 1900 e 1945, não faltaram acontecimentos capazes de representarem esse ideal de horror e destruição.
Hanna Aredt dizia que o “mal” residia na constante despercionalização dos seres como pessoa. Nos campos de extermínio da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) se via uma reafirmação constante de que os internos eram não apenas repulsivos, mas também desnecessários – embora o uso de sua força de trabalho estabeleça um paradoxo evidente quanto a ultima assertiva.
Hitler não foi o produto de uma sociedade capitalista, predatória e desumana, mas foi o reflexo do que ela tinha de melhor: o progresso da ciência e o costume, tipicamente burguês, de se reafirmar constantemente para se dissociar da massa gigantesca de anônimos. A relação de Hitler com a sociedade burguesa expressa um exemplo que contraria a imagem idealizada do revolucionário do século XX. Em nenhum momento Hitler questionou a existência ou os valores burgueses de sua época. Ele na realidade os colocou como o estilo a ser seguido.
Aparentemente estável e glorioso, o mundo burguês da segunda metade do século XIX já dava sinais de que o século seguinte seria dominado pela violência, pelo preconceito e, sobretudo, pelo medo. Indiretamente o progresso cientifico contribuiu para a intolerância e a destruição sem precedentes que se seguiria: Henri Poícare, ao definir que o tempo e o espaço não eram constantes desafiou a mecânica clássica de Newton, rompendo a suposta estabilidade do mundo físico; Pasteur apavorou a sociedade com a descoberta de que as doenças - muitas delas letais - eram causadas por agentes invisíveis a olho nu; Darwin havia exposto sua teoria da sobrevivência do mais adaptável, criando parâmetros biológicos sobre o qual se assentaram os defensores de uma aparente “superioridade” intelectual de determinados seguimentos sociais; e o que dizer da teoria da degeneração genética do medico francês Benedicte Morel, um especialista em epilepsia latente, cujos resultados seriam visíveis somente no século XX, sob a forma de campos de extermínio.
Não se trata de pregar o repudio ao progresso e a pesquisa cientifica, mas o exato oposto. A ciência nos eleva acima dos preconceitos e nos guia rumo ao esclarecimento fundamental dos propósitos humanos. Mas o fato é que essas conquistas tem um preço. A nêmese da ciência é justamente aquele que distorce seus feitos por ser incapaz de compreendê-los em termos puramente científicos.
A noção abstrata de valor, baseada em atributos físicos, essência fundamental do nazismo, já existia no período “pré-Hitler” e continuou existindo, de forma velada, no período posterior a ele. Hitler não criou uma nova forma de eugenia e de discriminação, ele apenas se amparou em um conceito amplamente difundido e aceito pela maior parte da população europeia e mundial. O próprio anglicanismo exacerbado do primeiro ministro Winston Churchill, e as políticas britânicas de incentivar o casamento de “biótipos perfeitos”, é um exemplo de que a política racista de eugenia não ficou restrita a Alemanha de Hitler.
Alguns acreditam que Hitler foi uma singularidade absoluta por saber utilizar sua angustia e os males sociais de sua época em proveito próprio. Nisto vemos seu valor político na medida em que sua capacidade retórica se funde com os aspectos negativos de seu meio. Seu poder de persuasão se baseava na exposição do obvio – apenas no que diz respeito aos caos econômico – algo que uma vez compreendido pelas massas se desconstruía como problema e emergia como meta a ser superada.
Essa capacidade de compreender e expor a crise econômica, da qual emergiu como produto, fez do fascismo uma opção lógica junto a uma população europeia conservadora e predominantemente anticomunista. O mérito político de Hitler foi sua aguçada capacidade de transpor as angustias da população alemã para um plano pratico. O radicalismo do partido nazista em contraste com os demais partidos da oposição - que insistiam em reafirmar os benefícios da industrialização e se sustentava em promessas de reforma salarial - era nada mais do que a vazão do descontentamento do povo alemão diante de uma crise da qual também haviam contribuído, mas que por conveniência preferiam esquecer. Obviamente que a Alemanha não foi responsável pela crise financeira européia deflagrada pela quebra da bolsa de Nova York, mas as restrições impostas pelo Tratado de Versalhes foram ocasionadas pelo militarismo germânico e pela posterior política agressiva do Kaiser Guilherme II.
Para Hitler a vida dura com privações durante sua juventude em Viena, foi nada mais que a expressão bruta, sem adornos ou atenuantes, de que a vida seria uma eterna luta pela sobrevivência, onde apenas os mais fortes teriam chance. Essa luta constante contra a própria miséria pessoal o convenceu de que cada ser humano deveria crescer por méritos próprios. Essa aceitação do darwinismo social por parte de um homem que sempre foi descrito como um esquisitão solitário ditaria uma das maiores tragédias humanas do século XX. Não se trata de defender a postura do líder nazista, mas de explicar como tamanha brutalidade e desumanidade brotaram a partir de um jovem fracassado em suas aspirações de uma carreira artística. Hitler foi um dos maiores monstros de nossa historia, mas a questão é: até que ponto ele se construiu sob amparo dos preconceitos sociais de sua época?
Hitler nasceu no dia 20 de abril de 1889, numa cidadezinha austríaca chamada Braunau. O ano de 1889 marca o período final da consolidação do liberalismo econômico, embora o período de trinfo do capitalismo tenha chegado ao fim em 1872, marcado por uma profunda crise financeira. O mundo burguês, em sua costumeira arrogância quanto aos seus feitos, já havia estabelecido um dos conceitos mais deploráveis da historia humana: a idéia de que os homens não eram iguais.
A acumulação de capital nas mãos dos grandes magnatas do aço e das ferrovias esbarrava num quadro constrangedor de miséria e pobreza. O liberalismo havia dado uma explicação racional e matemática para o livre mercado, mas não havia conseguido um conceito moral que tornasse a desigualdade aceita como algo natural. No ano de 1848 o período das grandes revoluções liberais havia terminado. A chamada “primavera dos povos” foi o último fôlego da esquerda europeia no sentido de consolidar sua utopia de uma sociedade igualitária; a partir daí os movimentos radicais foram sufocados em nome do “progresso”.
Entre 1848 e 1872 o mundo testemunhou mais guerras e operações militares do que se viu nos trinta anos anteriores e se veriam nos quarenta posteriores. Afastar o terror das revoluções era fundamental para o trinfo da sociedade burguesa; justificar a acumulação de muitos recursos nas mãos de poucos era uma questão determinante. Essa justificação encontrou amparo cientifico no darwinismo social segundo o qual homens de sucesso possuíam qualidades inexistentes naqueles que ocupavam as camadas sociais mais baixas. O sucesso deixava de ser um produto da sorte e do trabalho e passava a ser uma questão puramente biológica e genética. Essa idéia surgida em pleno século XIX ganhou força durante o século XX principalmente na Alemanha, símbolo do progresso cientifico e lar da maioria dos físicos e químicos laureados com o premio Nobel. Essa noção de uma suposta superioridade racial era aceita por boa parte da população; Hitler era apenas um entre uma nação de milhões que acolheram essa visão pseudocientífica.
Hitler sempre foi um visionário; sua ambição não tinha limites, e mesmo diante da imagem inequívoca do fim da estrada continuou avançando apegado à crença de que o chão se reconstruía a sua passagem. Seus projetos arquitetônicos gigantescos e sua visão de um reich que se estenderia do Volga ao Atlântico eram fruto de sua megalomania doentia e de um pragmatismo sem precedentes. Seu carisma era gigantesco assim como seu próprio ego. Não há duvidas de que se considerava um gênio e que, portanto, partilhava da típica autoconfiança burguesa do século anterior. Em uma passagem da obra “Main Kampf” ele escreveu:
“O gênio tem muitas vezes necessidade de uma espécie de choque (...) para emergir, sucede com frequência que na banalidade da vida diária criaturas de valor parecem insignificantes e não ultrapassam o mesmo nível dos que o cercam. Contudo desde que se defrontam com uma situação na qual os outros se mostram indefesos e incapazes, sua natureza genial se revela, surpreendendo assim todas os que até ali só viam mediocridade nelas (...) Se o momento dessa prova reveladora não tivesse acontecido ninguém jamais suspeitaria que a personalidade de um jovem herói se ocultava sob a fisionomia do adolescente imberbe. O golpe súbito e acidental do destino que derruba um faz surgir no outro um espírito indomável.”
Quem poderia imaginar que da lama das trincheiras da primeira grande guerra surgiria um jovem e insignificante soldado cujo propósito seria mergulhar a Europa no mais terrível conflito humano da história, em nome de um velho inimigo da verdade: a convicção. Sua lenda o transformou num ser indecifrável, enigmático, e surpreendentemente interessante. No dia 30 de abril de 1945, quando finalmente colocou fim a própria vida com um tiro na cabeça num bunker imundo da Berlim arrasada pela guerra, Hitler encerrou sua existência como homem e fez nascer o mito. Hoje ainda se perguntam como alguém poderia ser moralmente tão repulsivo. A resposta foi dada pelo próprio Hitler ao dizer que a consciência – algo que Van Gogh chamava de tribunal secreto da alma – era uma invenção judia.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO

quinta-feira, 3 de abril de 2014

BRASIL 1964 - A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO TOTALITARISMO -

“A verdade é que em cada um de nos, bem no fundo existe uma pequena dose de totalitarismo. É a luz estimulante da confiança e da segurança que mantém esse gênio do mal submerso (...) se desaparecerem a confiança e a segurança, não pensem que ele não estará esperando para substituí-la.”
-George F. Kenna
Pode-se questionar até que ponto o regime democrático, sempre vulnerável na medida em que mantém a livre expressão de pensamentos divergentes, está sujeito as reviravoltas políticas ditadas pelo medo ou pelos interesses de uma classe dominante. Nessa disputa quase sempre vemos o surgimento de seu equivalente antagônico, ou seja, o regime totalitário. Embora o totalitarismo seja um fenômeno político associado ao século XX, suas raízes são evidentemente muito mais antigas. Platão, por exemplo, criticou a democracia em sua obra “República” por considerar que o povo não era suficientemente instruído na arte da “ciência política”.
Dentro do contexto da historia de nosso país o período compreendido entre 1964 e 1985, os chamados “anos de chumbo”, ficou marcado por uma oposição quase patológica entre duas doutrinas políticas opostas que se digladiaram como um produto das massas. Diante dessa interpretação dos fatos históricos surge uma indagação: seria o golpe de 1964 um movimento predominantemente militar? A violência política é na maioria dos casos uma resposta para o medo. Novas reivindicações invariavelmente remetem a novas posturas o que cria a falsa ideia de desordem, baderna ou anarquia, na medida em que rompem com os valores éticos cosolidados ao longo dos anos. É justamente esse predomínio do imprevisível que motiva a ação por parte da ala mais conservadora da sociedade. O anticomunismo da direita política praticamente determinou uma postura de confundir o medo legitimo com aquele fabricado nos moldes da Guerra Fria, que pintava a imagem de regimes democráticos encurralados pelo “perigo vermelho”. Esse é um dos motivos que levam a concluir que o golpe militar de 1964 não foi apenas um movimento militar, mas também civil. Basta considerar que as bases teóricas do governo de exceção foram o resgate de valores políticos e sociais tidos como inalienáveis pela elite burguesa e sempre reafirmados pela doutrina militar graças a sua inflexibilidade clássica.
A ideologia socialista ganhou espaço entre os intelectuais Brasileiros graças a um recorde negativo de nosso país: o Brasil sempre foi um exemplo histórico e expressivo de desigualdade social. O terceiro mundo passou a enxergar seu verdadeiro potencial revolucionário a partir da experiência cubana que passou a ditar um modelo radical de reforma social cujos resultados, ainda que infinitamente distantes do ideal de “paraíso do proletariado”, se mostravam aparentemente mais atrativo que o velho e resistente capitalismo, solapado pelo ceticismo global em relação à política norte americana – amparo natural do livre mercado. Boa parte dos integrantes da esquerda política foram moldados pelas reformas do populista Getulio Vargas (1883-1954) cuja base de governo se assentava sobre a mais intensa força política do século XX: o nacionalismo.
Em março de 1964 o Brasil era um barril de pólvora prestes a explodir e seria justamente a postura inovadora com que João Goular resolveu encarar a crise agrária - cuja proposta invariavelmente levaria a uma crise na relação entre os donos da terra e os que a cultivavam - a principal responsável pela centelha detonadora para o golpe. Seriam 21 anos de vergonhosos abusos e falso moralismo. Nem mesmo os êxitos econômicos assombrosos, como o aumento de 10% do PIB – uma façanha somente equiparável aos crescimentos da Alemanha e do Japão pós-guerra – seriam suficientes para apagar a vergonha de um passado cor de chumbo.
A política de linha dura, motivada pelas guerrilhas, começou a ruir a partir do momento em que o governo militar atraiu para si um elevado nível de atenção hostil devido à tentativa de impor uma forma de moral civil construída pela necessidade política e não pelos costumes. Essa proposta absurda trazia em si mesma o fracasso como resultado obvio, pois as ações humanas não possuem a moral como regra única. O comportamento prático é muitas vezes adotado mediante situações onde as convicções particulares não encontram um campo favorável a sua influência. Esse comportamento prático é analisado como objeto de reflexão onde a prática-moral se transforma em teoria-moral. Esse julgamento mental realizado a posteriori, e a revelia das normas sociais, está intimamente relacionado à filosofia de cada individuo e consequentemente se torna incompatível com uma padronização arbitraria. Diante desse obstáculo cognitivo o regime relaxou sua garras e em 1985, para o bem de todos e felicidade geral da nação, deixou de existir. Apesar de ser um evento recente de nossa historia o período do governo militar ainda é pouco compreendido e sua real dimensão escapa da compreensão de boa parcela da sociedade, sobretudo da mais jovem. Centenas de obras sobre o tema preenchem as prateleiras das livrarias, mas poucas conseguem retratar o período em questão com tamanha maestria do que as obras do jornalista Elio Gaspari.
No ano de 1984, o jornalista Elio Gaspari se propôs a tarefa de escrever um ensaio, de não mais que cem paginas, sobre a relação entre Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva e a posterior ascensão de ambos ao poder no ano de 1974 - como presidente da República e Chefe da Casa Civil respectivamente. Contando com uma bolsa de estudos de três meses no Center for International Scholars e ao acesso a Biblioteca do Congresso Americano em Washington, Gaspari esperava concluir rapidamente seu trabalho, cujo titulo seria “Geisel e Golbery, o sacerdote e o feiticeiro”. Cerca de trinta paginas já haviam sido redigidas, e seu objetivo era explicar porque Geisel e Golbery desmantelaram a estrutura da ditadura militar, entre os anos de 1974 e 1979, se ambos haviam tido ativa participação na sua formação entre 1964 e 1967. Mergulhado em documentos oficiais e relatos de civis e militares, Gapari levaria dezoito anos para transformar sua proposta inicial em uma magistral serie de quatro livros que cobrem um dos períodos mais negros e lamentáveis da história de nosso país: os chamados “Anos de Chumbo”.
No primeiro volume, “A ditadura envergonhada”, o autor revela os bastidores da luta pelo poder que levaram ao golpe militar de março de 1964 até a criação do famigerado Ato Institucional número 5. O texto simples e direto parece dialogar com o leitor expondo o quadro caótico dos momentos finais do governo de Joáo Goular, que com seu anuncio de “reformas de base” havia apavorado a ala conservadora da sociedade fazendo deslocar uma serie de atitudes, boa parte delas de improviso, e cujas consequências seriam sentidas pelos próximos 21 anos. A participação do governo americano por traz do golpe militar, motivado pela crença de que “Jango” seria uma espécie de fantoche nas mãos dos comunistas, aparece logo na primeira parte da obra atraves de transcrições de conversas confidenciais, gravadas no salão oval da Casa Branca, entre o então presidente americano J. F. Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon. Essa intromissão norte americana nos assuntos relacionados à America latina – um exemplo claro de que no mundo globalizado os assuntos relativos às políticas domesticas e externas se inter-relacionam de forma intrínseca – no contexto de um mundo em plena guerra fria, onde o maniqueísmo típico do século XX, reafirmado pela polarização entre o leste socialista e o oeste capitalista, só aumentam a tensão narrativa das primeiras paginas.
Ao longo das mais de 400 paginas, cujo texto em alguns momentos pode parecer um pouco confuso, vemos os bastidores da operação “Brother Sam”, a fuga de “Jango”, a criação da SNI (Serviço Nacional de Informações), a decretação dos primeiros atos institucionais, a repressão aos núcleos estudantis e o inicio das praticas de tortura. “Agora vamos dar a vocês uma demonstração do que se faz clandestinamente no país”, teria dito um tenente de 27 anos a um grupo de estudantes pouco antes de serem torturados. Lentamente vemos o clima de otimismo da década de 50 desmoronar nas incertezas da década de 60. O governo começara a mostrar suas garras e poucos podiam imaginar que o pesadelo da repressão estava apenas começando.
POR TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Coleção: AS ILUSOES ARMADAS
Autor: GASPARI, ELIO
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
Número de páginas: 424

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