sexta-feira, 29 de março de 2013


“A revolução de 1848 ficaria na história francesa como algo muito diferente de uma reedição bem sucedida da Revolução de 1830. Suscitou esperanças que, bem mais que liberais e patrióticas, foram também sociais. E não pretendo corrigir apenas o funcionamento da maquina política, mas também o da sociedade humana”
-Maurice Agulhon
“Ao antigo regime havia sucedido a Monarquia Constitucional; à Monarquia, a República; à República, o Império, ao Império, a Restauração; depois viera a Monarquia de Julho. Após cada uma dessas mutações sucessivas, foi dito que a Revolução Francesa, tendo acabado o que presunçosamente se chama ‘sua obra’, havia terminado: era o que se dizia e no que se acreditava.”
- Alexis de Tocqueville
“De agora em diante governaram os banqueiros!”. Esse era o comentário mais comum nas ruas de Paris quando Luís Felipe - “o rei burguês” - chegou ao trono da França. Os dezoito anos de seu reinado ficaram marcados pelas violentas revoltas que tomaram conta das ruas e pela repressão sangrenta empregada pelas forças do governo. O único momento de relativa tranqüilidade talvez tenha sido durante a epidemia de cólera de 1832. O episodio mais famoso aconteceu no dia 15 de abril de 1834, no chamado “Massacre da Rue Transnonain”. Após um tumulto entre soldados do governo e os revoltosos um oficial acabou sendo ferido. Enquanto era transportado por seus companheiros um tiro foi disparado de um prédio localizado no numero 12 da Rue Transnonain. O disparo atingiu e matou o oficial ferido. A reação dos soldados foi imediata: arrombaram as portas e invadiram o prédio matando todos que encontravam em seu interior, incluindo mulheres e crianças. O episodio terminou com 12 mortos.
LUIS FELIPE
O governo de Luís Felipe nunca teve ampla aceitação popular e o confronto com a Argélia (1830-1847) só aumentou o fosso entre a oposição e o governo. Os massacres sofridos pelas tropas francesas nos combates contra a resistência argeliana resultaram em ataques de retaliação cuja brutalidade só seria equiparável as que tiveram lugar nas guerras do século XX. Quando as noticias das brutalidades realizadas pelo exercito francês chegaram a Paris a reação popular foi de indignação. As tropas que realizavam os massacres na Argélia eram comandadas pelo general Thomas Bugeaud, o mesmo responsável pelo massacre na Rue Transnonain.
MASSACRE NA RUE TRANSNONAIN
Os elogios generosos, e certamente exagerados, de Tocqueville, que era um monarquista declarado, a Luís Felipe não se sustentam quando analisamos a trajetória deste ultimo ao trono. Luís Felipe era filho do famoso, e moralmente desprezível, Duque de Orléans, que durante a Revolução Francesa havia se aliado aos Jacobinos devido a intrigas na corte. Em 1793 ele votou pela morte de seu primo, o rei Luís XVI, e pouco tempo depois mudou seu nome para Felipe Égalite numa jogada política cujo propósito era se aproximar ainda mais dos jacobinos Suas aspirações ao trono eram por demais evidentes para escapar do julgamento dos radicais parisienses. Felipe Égalite acabou preso e executado na guilhotina em 1794. Embora os jacobinos vissem em Felipe o fantasma da contra-revolução, sua prisão também foi motivada pelo comportamento de seu filho, o futuro rei Luís Felipe.
TROPAS FRANCESAS NA ARGELIA
Em 1789, Luís Felipe se alinhou aos ideais da revolução e aos 18 anos já era coronel do exercito revolucionário. Em 1793, o ano do Terror, tudo mudou. Antigos “herois” eram agora vistos como reacionários pelo famigerado Comitê de Salvação Publica. No dia 5 de abril, Luís Felipe e outros oficiais do exercito francês seguiram o general Dumouriez e se entregaram aos inimigos austríacos. Luís Felipe passaria anos no exílio onde teria aprimorado seus costumes burgueses.
Sua ascensão em direção ao trono começou em 1815 quando a restauração Bourbon renovou, em parte, o status dos Órleans. A deposição de Carlos X em 1830 foi o ato final. Luís Felipe assumiu o trono como “rei dos franceses” e não “rei da França”. De 1830 a 1848 a burguesia francesa viveu sua era de ouro pois o apoio da alta burguesia a Luís Felipe, que era banqueiro profissional, resultou numa política monarquista bastante favorável a seus interesses comerciais. As inúmeras revoltas republicanas contra o seu governo ocasionaram o endurecimento de sua política e o fim de muitas das prerrogativas dos anos iniciais.
Em 1848 a monarquia estava isolada entre dois partidos, ambos de direção burguesa e, no entanto completamente divergentes em reivindicações políticas. O chamado Partido do Movimento representava a esquerda do quadro político francês. Seus membros queriam reformas sociais que deveriam manter a ordem entre os membros da classe operaria. Do lado oposto estava o reacionário Partido da Resistência que se posicionava contra qualquer reforma política. Movidos por um forte anti-reformismo os membros do Partido da Resistência queriam “acalmar” os operários por meio da repressão violenta. Os chamados Socialistas haviam crescido significativamente como grupo político e suas reivindicações e ideais já eram amplamente divulgados em obras e jornais destinados aos operários.
Havia ainda os chamados Legitimistas cujo objetivo era restaurar um membro da dinastia Bourbon ao trono da França. As aspirações republicanas e a imobilidade dos monarquistas, tentando a todo custo conservar as prerrogativas da alta burguesia, eram por demais antagônicas para que um confronto não ocorresse. Depois de dezoito anos no trono da França o reinado de Luís Felipe terminaria manchado de sangue. O clima político era tenso e adornado de relativa harmonia entre as facções opostas, mas a crise financeira de 1846, que se arrastou até 1850, colocou fim a esta harmonia política. Assim como os eventos que precederam a revolução de 1789, a crise econômica que atingiu toda a Europa e não apenas a França converteu o clima tenso entre a oposição a um estado de agressão aberta e literal.
No século XIX a França ainda era um país rural e as péssimas colheitas desencadearam uma inflação que levou a paralisação de ferrovias, metalúrgicas e fabricas provocando demissões, queda no consumo e falências num clássico efeito dominó que quase sempre predomina os períodos pré-revolucionários.
DRAMA DA POPULAÇAO POBRE

O campo sempre foi um ponto nevrálgico na política francesa. A Revolução de 1789-1799 varreu qualquer vestígio do feudalismo, porem, algumas questões relacionadas à exploração de áreas desabitadas ainda alimentava discórdias no meio rural. Nas cidades cresceu a atividade exploratória, com destaque particular a usura, que funcionou como uma ferramenta de mercado, pois fornecia credito na forma de empréstimos, movimentando assim o comercio urbano. Os bancos também foram seriamente afetados pela crise uma vez que os empresários capitalistas vendo seus lucros serem reduzidos deram inicio a um êxodo de capital. Numa quase repetição dos eventos do século anterior a figura do ministro do rei ganhou destaque frente à crise financeira.
Ministro de Luís Felipe desde 1840, François Pierre Guizot era extremamente conservador vendo com hostilidade qualquer indicio de sentimento reformista tanto no plano social quanto no político. Guizot era um ardoroso defensor da concentração de poderes nas mãos do monarca se distanciando completamente dos monarquistas moderados. Mais uma vez os dirigentes da França se posicionavam de forma reacionária as reformas que tanto eram necessárias. No dia 29 de janeiro Alexis de Tocqueville pronunciou seu famoso discurso na Câmara dos Deputados:
“(...) Não ouvis então, por uma espécie de intuição instintiva que não se pode analisar, mas que e certo, que o solo treme de novo na Europa? Não ouvis então... como direi?... um vento de revolução que paira no ar? Não se sabe onde ele nasce, de onde vem, nem, acreditai, o que o carrega: e é em tempos como esse que ficais calmos na presença da degradação dos costumes públicos, porque a palavra não e suficientemente forte.(...) Falou-se em modificações na legislação, tenho muitas razões para crer que essas mudanças não são apenas muito úteis, mas necessárias: assim, creio na utilidade da reforma eleitoral, na urgência de reforma parlamentar, porem não sou tão insensato senhores, que não saiba que não só as leis em si mesmas que fazem o destino dos povos, não é o mecanismo das leis que produz grandes acontecimentos senhores, é o próprio espírito do governo.”
As palavras de Tocqueville foram recebidas por risos irônicos de seus companheiros. Em seu discurso estava o prenúncio da tragédia. O que aparentemente era um mar de águas tranqüilas em breve se revelaria a face de Caribdes. A atitude de Guizot atraiu o ódio dos três grupos: dos socialistas, devido ao seu anti-reformismo, dos Republicanos, devido a sua posição claramente monarquista e dos burgueses moderados que eram favoráveis a monarquia, mas com poderes limitados.
GUIZOT
O ponto de partida da oposição foi atacar a restrita base eleitoral do país que através do voto censitário limitava o número de eleitores em cerca de 300 mil. As reivindicações, assim como os interesses, se diversificavam bastante entre os grupos da oposição; alguns exigiam uma reforma moderada, uma espécie de “remendo”, motivada na crença de que seriam mais facilmente aceitas. Queriam a redução do censo o que aumentaria o número de eleitores. Os Republicanos e os Socialistas foram mais radicais e pediram abertamente o sufrágio universal. Os socialistas representavam a esquerda ultra-radical e para desespero dos moderados emergiam pela primeira vez como uma força política significativa. Foi por volta de 1840 que a palavra “Comunismo” entrou para o vocabulário do parisiense, embora os ideais do socialismo remotassem do século XVIII graças a nomes como Graco Babeuf e Joseph Fouché.
Naquele ano surgiram varias obras de caráter socialista como “O que é a propriedade” de Proudhon, “Da Humanidade” de Pierre Leroux; “Livro dos Sindicatos de Comercio e Corporações” de Perdiguier e “A Organização do Trabalho” de Louis Blanc. O termo “comunista” foi consagrado pelo advogado e jornalista parisiense Étienne Cabet, criador do jornal “Le Populaire”, muito famoso entre a classe operária. Foi graças ao seu romance “Voyage em Icarie”, um best-seller do período, que o termo se consagrou. Apesar de serem classificados como extremistas as reivindicações dos Socialistas não eram compatíveis com sua denominação política. Queriam a democracia política e o sufrágio universal nas eleições para as Assembléias.
O governo explorou as divergências entre as facções numa forma de manter a segurança da monarquia. A intrincada ramificação de ideais das facções dava ao governo o luxo de poder se livrar do adversário que mais lhe preocupasse, realizando apenas concessões que atendessem um ou outro. A alta burguesia, por exemplo, era contaria a República e tinham seus interesses restritos ao fim do ministério de Guizot, já os republicanos viam a República como única alternativa. Os Legitimistas queriam o fim da monarquia moderada pela absolutista. Em meio ao clima tenso o próprio governo acendeu o pavio da revolta.
Numa forma de controle da propagação do sentimento anti-monarquista, o que naquele momento se resumia basicamente ao republicanismo, as aglomerações políticas, ou reuniões públicas da oposição foram proibidas. Na tentativa de se esquivar dessa proibição a oposição realizava os chamados Banquetes Públicos – verdadeiras reuniões políticas usadas para angariar fundos e que atraiam um amplo número de espectadores. Sua denominação, no mínimo debochada, permitia a manutenção e aprimoramento das reivindicações da oposição de modo que seu impacto social não poderia ser ignorado. O fato é que os banquetes possuíam importância capital no cenário político e qualquer medida hostil a realização dos mesmos por parte da monarquia certamente resultaria num confronto mais áspero, para dizer o mínimo, entre governo e oposição.
No dia 14 de janeiro o ministro Guizot proibiu a realização do banquete marcado para o final do mês. O próprio Luís Felipe já havia declarado que estas aglomerações políticas eram fruto de ideologias cegas e opostas ao governo. A atitude de Guizot revela uma completa ignorância quanto aos aspectos políticos da capital além de expôs a falta de tato político do monarca para lidar com a oposição. Diante do quadro político a proibição era de fato a mais atrativa das medidas a serem tomadas; seus resultados seriam imediatos e politicamente muito vantajosos ao monarca, porem, o que inicialmente se apresenta como caminho mais correto se afunila no incontrolável. A monarquia de Luís Felipe rumava em direção ao desastre, numa repetição quase profética dos últimos regimes autoritários da França.
A afronta mais clara a determinação de Guizot veio de centenas de estudantes e operários dos bairros do leste de Paris: no dia 22 de fevereiro uma aglomeração de trabalhadores e estudantes ignorou a proibição e se dirigiu a Place Madeleine onde realizaram o banquete, que originalmente estava marcado para ocorrer no Champs-Élysées. Ao anoitecer ocorreram os primeiros atritos entre os manifestantes e a Guarda Nacional. Na Place de la Concorde os tumultos foram particularmente intensos.
A MONARQUIA DE JULHO DEPOSTA
No dia seguinte o governo esperava sufocar a revolta, mas uma parcela significativa dos membros da Guarda Nacional estava convencida de que aquela luta não era contra uma ameaça aos direitos burgueses, mas para isolar Guizot da hostilidade do povo. A Guarda Nacional não estava sendo usada para resguardar os direitos burgueses, mas como cúmplice nas maquinações políticas do governo. Diante desta perigosa constatação alguns membros da Guarda Nacional se uniram aos manifestantes sob os gritos de “Viva a República!” e “Abaixo Guizot”. Os ataques que até então eram direcionados ao impopular ministro passou a englobar a estrutura de governo monárquico do país.
Luís Felipe resolveu demitir Guizot na tentativa de aplacar a fúria e nomeou o Conde Mole como novo Ministro das Relações Exteriores. Quando a noticia da demissão de Guizot chegou às massas, na tarde do dia 23, ouve intenso rebuliço e as comemorações se prolongaram até a noite. A situação aparentemente havia sido contornada, poucos podiam imaginar que o reinado de Luís Felipe chegaria ao fim dentro de poucas horas. O rebuliço durante a noite teve conseqüências trágicas. As ruas de Paris ficaram entulhadas de operários e estudantes em algazarra com a demissão de Guizot, mas à medida que a noite caia a escuridão impedia o prosseguimento das comemorações. Um grupo de operários em frente ao prédio do Ministério das Relações Exteriores, no Boulevard dês Capucines, queriam que as luzes dos lampiões fossem acesas. A confusão teve inicio quando a Guarda Nacional disparou contra a multidão, alegando uma tentativa de invasão do prédio. Em meio à correria vários mortos ficaram estirados nas ruas. Os corpos foram rapidamente recolhidos pelos manifestantes e empilhados em carroças iluminadas por tochas que foram levadas pelas ruas num claro convite a transgressão. Alexis Tocqueville escreveu naquela noite: “Retirei-me cedo; deitei-me logo depois. Embora morasse bem próximo do Palácio dos Negócios Estrangeiros, não ouvi a fuzilaria que tanta influência exerceu sobre os destinos, e adormeci sem saber que tinha visto o último dia da monarquia de julho.”
No dia 24 a cidade parecia um barril de pólvora prestes a detonar. Luís Felipe metia os pés pelas mãos com medidas antagônicas que claramente se anulavam: nomeou Barrot para o Ministério, na esperança de que sua fama de reformista aplacasse os ânimos, e convocou Bugeaud para comandar a repressão contra os sediciosos da capital. Se por um lado abafava as chamas, por outro as alimentava. Nas primeiras horas da manha os combates ocorreram com intensidade no Carroussel. Por volta do meio dia os manifestantes atacaram o Palácio das Tulherias. Alexis de Tocqueville deixou registrado em suas memórias as impressões sobre aquela manha de 24 de fevereiro:
“(...) ao sair do meu quarto, encontrei a cozinheira, que voltava da cidade; a boa mulher estava completamente transtornada e fez-me um discurso lamurioso, do qual só entendi que o governo estava massacrando o pobre povo. Desci imediatamente e, mal havia posto o pé na rua, senti pela primeira vez que respirava em cheio a atmosfera das revoluções: o meio da rua estava vazio; as lojas estavam fechadas; não se viam carruagens ou transeuntes; não se ouviam os gritos dos vendedores ambulantes; (...)”
Sem saída Luís Felipe abdicou ao trono em nome de seu neto. A abdicação preocupou principalmente a alta burguesia já que a situação era propicia a uma revolta das classes mais baixas. Tinha inicio o governo provisório.
GOVERNO PROVISÓRIO
Após a insurreição de 24 de fevereiro Paris se converteu em um caos ideológico. O Parlamento já não mais existia e a confusão girava em torno da escolha de uma base ideológica social sobre o qual se edificaria o novo governo. Com o trono vago a oposição se uniu em um governo provisório baseado na coalizão entre alta burguesia (moderados), baixa burguesia (republicanos) e Socialistas. Desde o inicio o governo provisório se declarou partidário da República não havendo divergências em seu núcleo quanto a isto. A divergência no governo não era entre monarquistas e republicanos, mas entre radicais e moderados, em essência entre burgueses e proletariados.
Opostos ao socialistas os Republicanos Liberais (direita) não queriam nenhuma ruptura na ordem vigente e nenhuma concessão os socialistas. Controlavam dois ministérios: Fazenda e Obras Públicas e entre seus membros se destacaram Marie, Grémieux, Arago, Guarnier´Pàges e Marrast. Os Republicanos Conservadores (Centro) eram responsáveis por dois ministérios – Interior e Relações Exteriores. Seus dois nomes de destaque foram Alphonse Lamartine – famoso poeta romântico – e Ledru Rollin. Os Socialistas (esquerda) representavam a ala radical e mais frágil do governo. O quadro político se estruturou da seguinte forma:
Socialistas (esquerda) – Louis Blanc, Albert.
Repúblicanos Liberais (Direita) – Marie, Grémieux, Arago, Guarnier´Pàges e Marrast. Opostos ao socialistas os republicanos liberais não queriam nenhuma ruptura na ordem vigente e nenhuma concessão os socialistas. Os republicanos liberais controlavam dois ministérios: Fazenda e Obras Públicas.
Repúblicanos conservadores (Centro) – Lamartine, Ledru-Rollin. Responsáveis por dois ministérios: interior e relações exteriores.
A monarquia estava eliminada, mas a oposição permanecia. A alta burguesia temia um caos social e se agarrava a idéia de um governo estável; a alta burguesia só tinha um propósito: a criação de uma República e o sufrágio universal. Os Socialistas queriam leis trabalhistas e melhores condições de trabalho.
Uma das conseqüências quase indissociáveis ao período de revoltas são as crises econômicas e em 1848 a situação não seria diferente. A crise se agravou em parte devido à postura das classes mais altas diante da possibilidade de anarquia e de reivindicações socialistas. Empresários se recusaram a abrir novas fabricas e a reinvestir os lucros em seus negócios; o comercio despencou e o desemprego cresceu. O governo provisório tentou contornar a crise emitindo cédulas de menor valor nominal, incentivando a criação de empresas de concessão de credito público e tornando obrigatória a aceitação de notas bancarias. Todos os impostos diretos sofreram aumento de 45%.
Apesar de a inflação ser uma pedra no sapato do governo o desemprego generalizado era um mal maior. Para solucionar o problema do desemprego dois caminhos eram possíveis: o primeiro era a criação das chamadas Oficinas de Caridade - o nome por si apenas já configura uma ofensa - onde os desempregados eram escalados para atividades consideradas de “importância secundaria”, como reparo de estradas e manutenção de prédios públicos. A segunda opção era a criação das Oficinas Sociais onde os próprios operários criariam cooperativas de produção e os trabalhadores poderiam reivindicar seus direitos quando estes fossem negligenciados pelos patrões. Segundo Maurice Agulhon:
“A oficina social apresentava a vantagem de poder, em principio, aplicar-se a todos os trabalhadores (enquanto a oficina de caridade os transformava em trabalhadores de uma mesma especialidade). Por outro lado tinha a desvantagem de ameaçar a propriedade privada. Prevaleceram, portanto, as Oficinas de Caridade, rebatizadas de Oficinas Nacionais.”
O governo provisório estava sob intensa pressão dos Socialistas para que os trabalhadores fossem alvo das medidas governamentais. A criação de um Ministério do Trabalho era a reivindicação mais recorrente na cartilha dos socialistas. No dia 28 ouve protestos sobre a criação do ministério em frente à prefeitura. O ressentimento dos socialistas não era infundado: a participação destes na deposição da Monarquia de Julho havia tido relevante importância para que seus anseios fossem subjugados pelos representantes das demais classes. Os interesses burgueses já estavam garantidos por órgãos ministeriais (Obras públicas, Comercio e Agricultura), mas não havia nada que garantisse a classe trabalhadora. Depois de intensa discussão ficou estipulado que uma “Comissão de governo para trabalhadores” seria criada no lugar de um Ministério do Trabalho. A comissão seria composta em sua maioria por operários e sua sede seria o palácio Luxemburgo.
A criação da “Comissão do Luxemburgo”, como ficaria conhecida, seria uma jogada da Assembléia para se esquivar das reivindicações trabalhistas. Outra medida, cuja finalidade era reduzir a agitação operaria, foi o decreto que estipulava em 10 horas a jornada máxima de trabalho em Paris e em 11 horas nas províncias. Antes do decreto a jornada de trabalho era de 12 horas diárias. Essa seria uma curta e insignificante conquista operaria.
A indiferença da Assembléia aos socialistas aumentou o fosso entre a esquerda e as facções burguesas moderadas, tornando evidente a característica de luta de classes no seio do governo, algo que não poderia manter seu estatus quo por muito tempo. Um horizonte de violência se aproximava trazido pelo vento forte da incerteza e canalizado por ideologias completamente antagônicas. As diferenças não demoraram a se evidenciar e na maioria das vezes essa “expressão de opostos” tem efeitos de natureza colateral cujo grau de violência atinge uma singularidade lamentável.
No dia 26 de fevereiro a pena de morte por motivos políticos foi abolida e decidiu-se pela criação de uma Guarda Nacional móvel, que ao contrario da Guarda Nacional comum seria permanente e seus membros teriam salário. Foi à forma encontrada pela Assembléia de aumentar o efetivo militar da cidade ao mesmo tempo em que afastava os jovens da anarquia dos clubes. As eleições para a Assembléia canalizaram a situação tensa para o confronto aberto. Os socialistas queriam adiar as eleições, marcadas para 9 de abril, pois estavam convencidos de que a maioria da população das demais províncias, principalmente as do campo, optariam por nomes da facção liberal, contrários ao socialismo, pois ainda viam o socialismo como um regime excessivamente radical, embora ainda fosse pouco conhecido. Blanqui insistiu no adiamento e conseguiu que as eleições fossem marcadas para 23 de abril. O adiamento foi por um período tão curto que passou despercebido. Apesar das novas tentativas de adiamento dos socialistas as votações para a Assembléia Constituinte ocorreram na data marcada. Votaram todos os homens com mais de 21 anos.
ASSEMBLEIA CONSTITUINTE
Socialistas e republicanos estavam fadados a derrota uma vez que a influencia destes não ultrapassava os limites de Paris. Em contrapartida o chamado Partido da Ordem – representantes da extrema direita – tinham reconhecimento em todo o território francês. As eleições elegeram 700 deputados do Partido da Ordem; menos de 100 republicanos e socialistas foram eleitos. A constituinte era esmagadoramente moderada. A República foi declarada oficialmente em 4 de maio numa sessão solene da Assembléia. Era a segunda República do país e a nova Assembléia estava empenhada na manutenção da ordem. Embora de forma velada essa “manutenção” deixava implícita uma postura anti-socialista e no mínimo reacionária. A recém criada Assembléia padecia dos mesmos erros físicos que sua antecessora em 1792: dimensões exageradas que favoreciam mais ao atrito político interno do que os debates relacionados ao interesse do povo. Alexis de Tocqueville descreveu o ambiente físico:
“A sala formava um retângulo de tamanho prodigioso; a um extremo encontrava-se a mesa do presidente e a tribuna, nove fileiras de bancos elevavam-se em degraus ao longo das outras três paredes. No meio, em frente à tribuna, estendia-se um vasto espaço vazio que lembrava uma arena de um anfiteatro, salvo que esta era quadrada e não redonda. Assim a maioria dos ouvintes só entrevia de lado aquele que falava, e os únicos que o viam de frente ficavam dele muito distantes: uma disposição singular favorável à desatenção e à desordem, pois os primeiros – mal vendo o orador, mas olhando-se sempre uns aos outros – estavam mais ocupados em se ameaçar e se apostrofar do que em escutar, e os outros por sua vez não escutavam, pois se viam perfeitamente quem ocupava a tribuna, ouviam-no mal. Grandes janelas situadas bem alto da sala abriam-se diretamente para o exterior permitiam a entrada do ar e da luz; apenas algumas bandeiras ornamentavam as paredes (...) o conjunto dava o aspecto de imensidão, e tinha uma fisionomia fria, grave, quase triste.”
A inexperiência do novo governo, assim como a predominância de parisienses em seus núcleos, ocasionou certa negligencia involuntária quanto à situação do campo. Numa repetição do chamado “grande medo” de 1789 os camponeses destruíram linhas ferroviárias e castelos das províncias. Em Paris a situação seguia em ritmo de relativa harmonia. A oposição interna no governo havia encontrado uma forma de coexistência política que acalmou principalmente os socialistas. Era a característica e perigosa calma que antecede as grandes reviravoltas políticas.
De certa forma os próprios socialistas forneceram as armas para sua derrota. Seus discursos estavam cada vez mais focados na abolição da propriedade privada e da hierarquia social. Essas reivindicações eram divulgadas por meio de jornais e clubes com pouco ou nenhum poder político. Apesar da fraqueza política dos socialistas as questões, relacionadas à abolição da propriedade, assustaram tanto a alta quanto a baixa burguesia. Os burgueses sabiam que os socialistas eram a ala mais fraca do governo, mas também sabiam do estrago que uma classe social em ascensão era capaz de fazer. O medo de uma anarquia proletariada levou a burguesia dividida e a população do campo a uma união anti-socialista.
15 DE MAIO DE 1848
O dia 15 de maio seria um divisor de águas na historia da segunda república francesa. Inicialmente a constituinte se encarregou de por fim ao caos administrativo dos ministérios. A presidência seria exercida por cinco membros do governo provisório agrupados na chamada “Comissão administrativa”. Os cinco nomes eleitos para a comissão foram: Lamartine, Arago, Guarnier-Pagès, Marie e Ledru-Rollin. Cavaignac foi eleito para o Ministério da Guerra. A eleição para a comissão e para os ministérios deu seqüência ao afastamento gradual dos socialistas do governo.
O que aconteceu no dia 15 permanece um enigma, o fato e que centenas de manifestantes invadiram a Assembléia em protesto pela miséria da classe operaria. Cerca de 20 mil pessoas cercaram a Assembléia e em dado momento as portas foram arrebentadas e uma multidão de trabalhadores invadiu o local, alguns entraram pelas janelas outros portavam símbolos da Revolução de 1789, como o barrete frigido. A confusão tomou conta do lugar. Alexis de Tocqueville se lembra de ter visto um bando de homens se engalfinhando aos pés da tribuna do presidente. No alto da tribuna vários homens falavam ao mesmo tempo de forma confusa e indistinta. A confusão na tribuna só terminou quando a estrutura começou a estalar debaixo da multidão. Auguste Blanqui foi carregado até a tribuna e no meio da multidão ecoou o grito de “A Assembléia está destituída!”. Foi o pretexto final para a repressão do governo aos operários.
Alguns historiadores acreditam que a segurança da Assembléia não havia sido reforçada justamente como uma forma de convite a transgressão, fornecendo a desculpa para uma repressão armada. Segundo algumas fontes o autor do grito teria sido Aloysius Hubert, um antigo membro da policia monarquista, aumentando as suspeitas de um complô, embora nada realmente substancial possa ser afirmado.
O ataque da Assembléia a classe trabalhadora ocorria em ondas: no dia 20 de maio ouve debates sobre o destino das Oficinas Nacionais terminando com a detenção de alguns militantes socialistas. Era o declínio final dos radicais, “A extrema esquerda estava decapitada” escreveu Agulhon. Em 4 de junho ocorreram eleições complementares a Assembléia. Entre os novos nomes estavam o do poeta Victor Hugo, que optou por assentos à direita, num claro apoio a ala conservadora do governo.
As Oficinas Nacionais funcionaram também como instrumento político, pois seus resultados práticos eram pouco proveitosos a classe operaria. As oficinas afastavam uma parcela da classe operaria dos clubes radicais, em função disto as mesmas tinham apoio dos moderados do governo. O papel das Oficinas Nacionais no controle do radicalismo não era uma suposição correta; como logo se constataria. As oficinas contribuíram para o estabelecimento da noção de uma “classe operaria” o que teria conseqüências muito além dos prognósticos dos moderados. Quando a influencia no movimento operário se tornou evidente a Assembléia resolveu selar seu destino: em 21 de junho a comissão executiva, por meio de um decreto, determinou que todos os trabalhadores com até 25 anos deveriam se incorporar ao exercito. Acovardada sob a sombra de um decreto a Assembléia colocava fim as oficinas.
JUNHO DE 1848: CALCÁRIO E SANGUE
No dia seguinte o decreto foi publicado no Moniteur; em poucas horas irromperam os protestos operários. As autoridades ordenaram que os manifestantes se dispersassem porem a recusa dos operários em seguir essa determinação deflagrou o inicio do tumulto. Centenas de milícias de operários armados percorreram as ruas. Algumas delegações operárias tentaram apresentar exigências a Comissão do Poder Executivo que se recusou a aceitá-las. Diante da recusa os manifestantes prometeram um levante armado para o dia seguinte: 23 de junho de 1848, um dos mais sangrentos da historia da capital. Apesar de alarmada a Assembléia nada fez para impedir a revolta. Talvez seja possível encontrar resposta para a revolta nas palavras de Locke:
“Quando a mão que se emprega no manejo do arado e da enxada, a cabeça raramente se eleva para idéias sublimes ou se exercita em raciocínios misteriosos. Daí não ser difícil concluir ser a classe trabalhadora incapaz de seguir uma ética racionalista. Por isso, o único tipo de ação política empreende fica restrito à insurreição armada; o direito a revolução é nele a única prova efetiva de cidadania, pois não consegue imaginar nenhum outro método para derrubar um governo não desejado.”
Segundo Agulhon o traço marcante das jornadas de junho foi à espontaneidade:
“As jornadas de junho representaram na historia da França a batalha de classes em estado puro – de um modo que nunca tivera paralelo antes, nem depois, até o momento Marx e Engels, estão em Colônia, acompanhando com o mais vivo interesse o desenrolar da revolução na França, e exatamente nessa época elaboraram as bases da teoria da luta das classes como realidade mais profunda da historia. Impossível achar casual a correlação.”
Ao explodir a revolta duas linhas de demarcação, uma geográfica e outra ideológica, surgiram como entrepostos de rivais: seriam burgueses contra operários, seriam os bairros Vermelhos do leste de Paris contra o azul burguês dos bairros do oeste. As condições dos bairros operários eram, para dizer o mínimo, deploráveis. Ruas estreitas com pouca ventilação rodeadas por residências velhas, imundas e com poucas janelas - pois durante a Revolução Francesa havia sido introduzido o imposto sobre portas e janelas, o que diminui significativamente a ventilação na residência dos mais pobres. As ruas possuíam uma leve inclinação para o centro onde uma vala rasa e estreita dava vazão a todo tipo de imundice lançada nas ruas. O fedor era insuportável durante o verão. Apenas uma a cada cinco casas possuía água encanada. Nas esquinas os corpos dos que morriam de inanição ficavam estirados por dias, até que o mau cheiro força-se a atitude dos indiferentes.
Nos dia 23, 24 e 25 de junho os becos e vielas dos bairros pobres de Paris se converteram em autênticos abatedouros. Durante três dias a capital dos franceses teria suas ruas regadas por “sangue vermelho”. Nas primeiras horas da manhã do dia 23 as primeiras barricadas foram erguidas. Na Place de La Bastille um militante chamado Pujol incitou os 20 mil operários ali reunidos a revolta. Não poderia haver local mais simbólico para o ato, pois a Place de La Bastille era o coração do bairro operário Saint-Antoine, um dos mais violentos da capital. Alexis Tocqueville alegou em suas memórias ter visto barricadas serem erguidas nas proximidades da igreja Madeleine e do Hôtel de Ville.
As barricadas eram erguidas com todo o entulho encontrado pelos operários: moveis velhos, carroças, tambores cheios de terra, telhas, portas e principalmente por blocos de calcário que pavimentavam as ruas formando verdadeiras muralhas nas ruas estreitas dos bairros do leste. A quantidade de entulho era tão grande que os tiros de canhão de pequeno calibre eram simplesmente absorvidos pela massa de destroços. Alexis Tocqueville presenciou a construção de uma destas barricadas:
“As barricadas eram construídas com arte por um pequeno número de homens que trabalhavam diligentemente, não como criminosos premiados pelo temor de serem surpreendidos em flagrante delito, mas como bons operários que querem terminar sua tarefa, rapidamente e bem. O público olhava-os placidamente, sem desaprovar ou ajudar. Desta vez não encontrei em lugar algum aquela espécie de agitação universal que havia visto em 1830 e que, então, tinha me feito comparar toda a cidade a uma vasta caldeira em ebulição. Agora o governo não era derrubado: caía.”
A mais gigantesca de todas as barricadas era a da Place de La Bastille, que fechava a entrada do bairro Saint-Antoine e chegava altura de um prédio de três andares. Algumas casas haviam sido demolidas nas proximidades e o entulho foi usado para erguê-la. O poeta Victor Hugo classificou a barricada da Place de La Bastille como “acrópole dos pés descalços.” Outra gigantesca barricada era a da Rue Du Temple construída com blocos de calcário possuía uma simetria assustadora e lembrava as antigas muralhas das fortalezas medievais. Ao longo da Rue du Faubourg Saint-Antoine até o cruzamento da Rue Picpus, mais de vinte barricadas foram erguidas num espaço de cinco quarteirões. Ao longo da Rue du Temple haviam outras 14. Nas ruas a oeste do Hospital Salpètriere, no perímetro entre as ruas Saint-Jacques e a Place Valhubert, havia mais de cinqüenta barricadas. Nas memórias de Alexis Tocqueville está registrado:
“Durante a jornada, não avistei em Paris um único dos antigos agentes da força pública, um soldado, um gendarme, um agente da policia; a própria Guarda Nacional tinha desaparecido. Somente o povo portava armas, guardava os lugares públicos, vigiava, comandava, punia; era extraordinário e terrível ver exclusivamente nas mãos dos que nada possuíam toda a imensa cidade cheia de tanta riqueza.”
Na Assembléia reinava a confusão; pouco se sabia sobre as reais condições de Paris e poucos ousaram propor medidas para acabar com a revolta. Membros da Comissão Executiva alegaram aos deputados que a revolta seria sufocada até a noite. Durante a sessão da tarde do dia 23 chegaram noticias que contrariaram duramente as expectativas dos membros da comissão: disparos partiram das barricadas contra os soldados de Lamartine e dois membros da Assembléia haviam sido mortos ao tentarem se aproximar de uma barricada para negociar. A Assembleia, que tanto havia esperado pelo momento de confrontar abertamente os radicais, tinha agora um motivo claro.
Alguns historiadores acreditam que a violência emanada da revolta foi decorrente da paixão com que os opostos defendiam suas ideologias. Os burgueses acreditavam de fato que sua posição social e suas propriedades eram edificadas sobre algo que hoje chamaríamos de mérito próprio. Os trabalhadores estavam firmes de que suas reivindicações representavam a verdadeira justiça social. Danos de natureza colateral sempre decorrem do choque entre opostos, a única variável e sobre a escala de violência emanada do evento.
Por volta da meia noite, o general Cavaignac, então Ministro da Guerra, anunciou na Assembléia que a Comissão Executiva havia lhe repassado por decreto o comando militar da cidade e que para acabar com a revolta ordenou que regimentos da Guarda Nacional nos arredores de Paris marchassem para a cidade. Na pratica o decreto dava ao general poderes quase ditatoriais, a cidade havia sido declarada em estado de sitio. Voluntários de diversas partes do país, camponeses, nobres, burgueses e padres marcharam até Paris para ajudar na repressão contra os socialistas. Tocqueville deixou a sessão por volta da uma da manhã e observando a cidade enquanto atravessava a Pont Royal mal pode acreditar no silencio reinante nas ruas:
“Tive dificuldade em me persuadir de que tudo o que havia visto e ouvido desde a manhã era realidade e não uma pura criação de meu espírito. As praças e as ruas que atravessava estavam absolutamente desertas; nenhum ruído, nenhum grito (...)”.
O amanhecer, no entanto, não seria tão tranqüilo:
“Quando despertei” - escreveu Tocqueville - “já era tarde, o sol pairava havia algum tempo sobre o horizonte (...) ouvi um som metálico e seco, que fez tremer os vidros e extinguiu-se imediatamente no silencio de Paris: ‘o que é isso?´, perguntei; e minha mulher respondeu-me:´é o canhão; faz uma hora que estão atirando; não achei conveniente acordá-lo, pois hoje, sem duvida, necessitará de todas as suas forças”.
Naquela altura a Assembléia já estava cercada por soldados da Guarda Nacional. Na Place de La Bastille o arcebispo Denys Affre tentou se aproximar da barricada segurando um galho de arvore com folhas verdes – símbolo de paz - quando os insurgentes ouviram disparos acreditaram que se tratava de uma armadilha e revidaram. No fogo cruzado o arcebispo acabou atingido por uma bala perdida. Morreria devido ao ferimento no dia 27 de julho.
No dia 25 os combates seguiram a mesma violência dos dias anteriores; algumas ruas estavam cobertas pelos corpos de operários mortos pelos canhões do general Cavaignac. O método clássico usado para tomar as barricadas consistia em desgastar os revoltosos forçando os a realizar disparos. Quando os disparos reduziam era sinal de que a munição estava no fim e era nesse momento que o assalto final era realizado. Os soldados posicionavam dois canhões – um com munição de metralha e outro com munição solida de chumbo. A munição de metralha – chamada de tiro de dispersão – consistia em uma bolsa de pano recheada por esferas pequenas de chumbo, um pouco maiores que a dos mosquetes e que ao serem disparadas criavam uma chuva de projeteis. A metralha era direcionada para o topo da barricada, forçando os que a defendiam a se concentrar na parte mais inferior; enquanto isso a munição solida era utilizada para fazer a parte superior desmoronar, facilitando a escalada dos soldados da Guarda Nacional.
Para esse tipo de combate os canhões mais utilizados eram de doze ou nove libras, armamento padrão da artilharia francesa. Cada canhão era carregado com 3 libras de pólvora granulada e era capaz de penetrar de 3 a 4 cm de madeira solida. O canhão de 18 libras, usado contra alvos maiores e mais distantes, era particularmente terrível. Em alguns casos a munição explosiva era utilizada, lançando uma chuva de estilhaços da própria barricada contra seus defensores causando mais mortes do que os disparos diretos.
Ao anoitecer a munição era escassa e a revolta dava sinais de esgotamento. Paris já estava abarrotada de Guardas Nacionais burgueses a espera da ofensiva final. Nas primeiras horas da manhã do dia 26 as barricadas foram atacadas por assaltos diretos: uma a uma elas foram tomadas; as ruas começaram a ficar tomadas de corpos tanto dos defensores como da Guarda Nacional. Cerca de 1600 pessoas, em sua maioria da classe operaria, foram mortos nas ruas. As 11h da manhã as últimas barricadas foram tomadas. A revolta chegava ao seu fim trágico, o grito operário sufocado pelo poder superior da burguesia parisiense. A ideologia que se acreditava ter morrido nas barricadas ressurgiria com uma força inimaginável algumas décadas mais tarde; a Comuna de Paris seria ainda mais sangrenta. Segundo Tocqueville:
“insurreição de junho, a maior e a mais singular que teve lugar na nossa historia e talvez em qualquer outra: a maior, pois durante quatro dias mais de 100 mil homens nela se engajaram, e cinco generais pereceram; a mais singular, pois os insurgentes combateram sem gritos de guerra, sem lideres, sem bandeiras e, não obstante, com um conjunto maravilhoso e com uma experiência militar que assombrou os mais antigos oficiais. O que distinguiu ainda, entre todos os acontecimentos do gênero que quase se sucederam nos últimos sessenta anos na França, foi que ela não teve por objetivo mudar a forma de governo, mas alterar a ordem da sociedade. Não foi, para dizer a verdade, uma luta política (no sentido que até então tínhamos dado a palavra), mas um combate de classe (...)”
-FIM DA PARTE I -
AUTOR: TIAGO RODRIGUES CARVALHO
FONTES:
- 1848 O aprendizado da República - Maurice Agulhon
- Lembranças de 1848 - Alexis Tocqueville
- A historia secreta de Paris - Andew Hussey
- O 18 de Brumario de Luís Bonaparte - Karl Marx
- Manifesto do Partido Comunista - Karl Marx e Friendrich Engels
- A era do Capital - Eric Hobsbawn
- A era das revoluções - Eric Hobsbawn

domingo, 24 de março de 2013

NOVA BIOGRAFIA DE CATARINA A GRANDE

Autor do bestseller internacional Nicolau e Alexandra, e da biografia ganhadora do Prêmio Pulitzer, Pedro, o Grande, o historiador e biógrafo norte-americano Robert K. Massie retoma ao universo da Rússia czarista que o consagrou, com o lançamento Catarina, a Grande – retrato de uma mulher. Apontado como um dos destaques do ano pelo The New York Times, Washington Post e outras importantes publicações, o livro ganhou o Prêmio Pen/Jacqueline Bograd Weld de melhor biografia publicada nos Estados Unidos em 2011, recebeu resenhas elogiosas dos principais veículos de imprensa e figurou nas mais importantes listas dos mais vendidos nos Estados Unidos.
Catarina, a Grande – Retrato de uma mulher é, antes de tudo, a história de uma pessoa solitária, que nunca gozou de afeto e amizade e, mesmo assim e por isso mesmo, viveu para amar e ser amada, sentimento sublimado pela adoção da Rússia como objeto de seu amor maior, e que teve como reflexos sua modernização – educacional e cultural – e expansão territorial, nos 34 anos em que governou, colocando-a como uma das maiores potências europeias do século XIX. O livro de Robert K. Massie traça um retrato da vida pessoal e pública de Catarina, com referências às próprias memórias da imperatriz e perfis de personagens importantes em sua vida, como a imperatriz Elizabeth, da Rússia, e seu amante e auxiliar Gregório Potemkin.
Catarina era filha de pequenos aristocratas germânicos – o pai, militar recluso e praticamente ausente, e a mãe, amargurada, carreirista e que nunca a amou. Oferecida para casar, aos 16 anos, com o futuro imperador da Rússia, ela começa então sua amarga trilha rumo à imortalidade e a um lugar no coração do povo russo, que lhe dedicou o afeto que nunca teve na vida pessoal. Extremamente inteligente e carismática, ela conquistou a população russa por ter feito questão de dominar a língua de seu futuro país e ter adotado a Igreja Cristã Ortodoxa como credo, deixando suas raízes protestantes na terra natal.
Tanta dedicação jamais foi suficiente para conquistar o afeto do marido, um homem fraco de mente e saúde, que jamais teve por ela sequer interesse sexual e a desafiava embriagando-se e desfilando abertamente com inúmeras amantes na corte. A ausência de sexo e, por conseguinte, de filhos alarmava a imperatriz Elizabeth, que não tinha herdeiros e via na união do casal a possibilidade de perpetuar a dinastia de Pedro, o Grande, de quem era filha, no trono. A solução não tardou a aparecer: um amante providenciou o rebento, Paulo, primogênito de Catarina. Mas sob o julgo e poder de Elizabeth, jamais lhe foi permitido exercer a maternidade: seu filho foi criado afastado dela e a relação entre os dois ficou abalada para sempre.
A oportunidade de chegar ao poder acontece anos depois, quando Elizabeth falece e o marido de Catarina sobe ao trono como Pedro III. Fraco, ele mergulha a Rússia numa bagunça sem fim e, seis meses depois, é destituído do trono por ela, que participa de um providencial golpe de Estado. Pedro morre misteriosamente dias depois, prisioneiro de aliados da imperatriz e, apesar de a História inocentá-la, Catarina tem o caráter maculado, sendo comparada a uma déspota sanguinária, a exemplo de Ivan, o Terrível.
Paralelamente ao caos absoluto que foi sua vida pessoal, com falta de amor e excesso de amantes – boa parte deles ocupando postos importantes em seu reinado –, Catarina eleva a Rússia ao status de potência. Na época em que subiu ao poder, o país era visto por seus parceiros europeus como exótico e atrasado, como diz o autor, “semiasiático”. Durante o reinado de Catarina, o Império Russo modernizou-se com o apoio de intelectuais iluministas como Voltaire e Diderot, que aconselharam Catarina a investir em educação, arte e cultura. O desenvolvimento não foi apenas cultural. Catarina alargou as fronteiras da Rússia para o sul e para o ocidente, absorvendo a Crimeia, Ucrânia, Bielorrússia, Lituânia e Curlândia, ao custo de conflitos bem-sucedidos com o Império Otomano e a Primeira República da Polônia.
A biografia de Catarina, morta aos 67 anos e sucedida no trono por seu filho Paulo, tem o ritmo de um bom thriller, com a profundidade histórica reconhecida das obras anteriores de Massie e necessária para contar o perfil de uma importante e polêmica figura.
Livro: CATARINA, A GRANDE Autor: Robert Massie Tradução:Ângela Lobo de Andrade ISBN:978-85-325-2799-8 Páginas:640 Formato : 16x23 Preço : R$ 59,50

domingo, 3 de março de 2013

“(...) há um ponto em que os infortunados e os infames se misturam e se confundem numa palavra, fatal palavra: são os miseráveis.”
– Victor Hugo.
No dia 17 de outubro de 2009 - como de costume - entrei em uma livraria aqui na cidade de Belo Horizonte a procura de uma boa obra. Infelizmente eu não contava com uma quantia apreciável de dinheiro de modo que minhas escolhas ficaram um tanto limitadas. Percorrendo as estantes dos esteticamente admirados livros de bolso me deparei com uma obra do escritor francês Victor Hugo chamada Os Miseráveis. Eu já havia lido um breve resumo da obra, mas nada que houvesse me apresentado ao menos uma fração de sua grandeza. Diante de poucas opções, considerando meu potencial aquisitivo do momento e atraído pela belíssima pintura de Eugene Delacroix da capa, acabei comprando.
Dois meses depois eu havia terminado de ler as mais de mil e novecentas paginas do romance. Minha opinião sobre a obra foi tão positiva que logo no mês seguinte adquiri uma edição de luxo de Os Miseráveis, em capa dura e com uma tradução mais refinada. Imediatamente mergulhei na releitura. Ao terminar já podia afirmava com absoluta certeza: trata-se da melhor obra literária que já li na vida!
O livro não provocou apenas a minha admiração, mas abalou-me completamente de um modo como eu jamais julgaria ser possível. Naquela altura, Dostoievski já figurava como meu escritor preferido e eu já havia me rendido a sua maestria depois de ler clássicos como Os Irmãos Karamazov, Crime e Castigo e Os Demônios, no entanto, o romantismo de Victor Hugo me comoveu a um nível equiparável ao realismo do gênio russo.
O CRIADOR
Em junho de 1848 as ruas de Paris estavam tomadas pelas barricadas. As tropas do General Cavaignac (1802-1857) reprimiam a revolta por meio de intensos e dramáticos combates nas estreitas e fétidas ruas dos bairros operários. Cerca de 50 mil parisienses armados e furiosos se ergueram contra as maquinações da Assembléia Constituinte, cada vez mais oposta à classe operaria. Em meio à anarquia das ruas um acontecimento singular, e quase cinematográfico, teve lugar em uma apagada rua da capital parisiense: uma casa foi invadida e pilhada por uma multidão. No escritório da residência um homem, chamado Gobert, encontrou as paginas manuscritas de um romance inconcluso. Na parte superior da pagina inicial estava escrito “Les Miserables”.
QUADRO DE EUGENE DELACROIX TERIA SIDO INSPIRADO NA OBRA DE VICTOR HUGO
A casa em questão era a residência do poeta Victor Hugo e o manuscrito sobre a mesa se tornaria uma das mais belas obras da literatura universal, um marco no movimento romântico fruto do olhar humano que ousou enxergar a historia de centenas de miseráveis anônimos vivendo em uma sociedade que andava de braços dados com a desumanidade.
A vocação literária de Victor Marie Hugo aflorou bem cedo o que lhe trouxe reconhecimento precoce no meio acadêmico e confrontos familiares: seu pai, um general do exercito napoleônico, esperava que seu filho seguisse uma carreira mais solida que as letras. Ao longo de sua vida o escritor enfrentou a miséria na juventude, a morte de sua esposa e de sua amante, enfrentou a perda de seus filhos, sofreu exílio político, testemunhou a loucura final de seu irmão em meio ao rebuliço político francês característico do século XIX. Sua vida foi como a de seus personagens: intensa e cercada por adversidades. Sua obra foi o retrato da sociedade em que viveu e sua mensagem foi o eco da manifestação dolorosa sentida por milhares de anônimos subjugados pela mais terrível chaga social: a miséria.
A TESE SOCIAL DE OS MISERAVEIS
A interface de similaridades entre ficção e realidade se expressa mais claramente quando a ficção se baseia numa ampla realidade social e não em uma particularidade individual. Partindo desta premissa a certeza que se estabelece é que muitas obras literárias auxiliam na compreensão da sociedade na medida em que o quadro social do período em que a historia se passa torna-se o traço recorrente do autor ao longo de sua narrativa. Seja na escola romântica ou na realista o fato é que a literatura melhora nossa percepção diante dos fatos, uma vez que o retrato social é apresentado de forma atrativa, dispensando a frieza maçante dos textos de caráter mais denotativo.
Existe, obviamente, um imenso volume de obras cujo foco é a sociedade do século XIX. Quase todas as grandes obras imortais da literatura focam sua narrativa neste período, porem, nenhuma obra romântica aborda a pobreza e a miséria de forma tão magistral quanto Os Miseráveis de Victor Hugo. É impressionante que uma obra indescritivelmente bela tenha por moldura algo tão horrível como a miséria. Talvez esse paradoxo artístico possa ser explicado por uma frase do próprio escritor francês: “não seria a primeira vez que o esterco ajudaria a primavera a produzir uma flor.” Os extremos nascem do confronto entre antagonistas, de modo que algo tão belo não poderia ter surgido de algo que não fosse diametralmente oposto ao circulo da dialetica que delimita a sociedade.
A obra é tão grandiosa que se torna impossível produzir um resumo que não exclua aspectos relevantes. O objetivo deste texto não é realizar um resumo da obra, embora em alguns momentos possa parecer o contrario. Meu propósito é debater a grandiosidade do texto ficcional tanto no seu plano artístico como no plano social. Arte e sociedade, dois tópicos aparentemente imiscíveis entre si, então intrinsecamente relacionados uma vez que a primeira é a projeção da segunda.
Os Miseráveis não se resume a um produto literário típico da terceira fase do movimento romântico. A obra é um retrato daquilo que vemos e convenientemente ignoramos todos os dias; é tudo aquilo que admiramos na juventude e que a amargura inerente a vida adulta se encarrega de sufocar em nome do que chamamos de “maturidade”. Poucos escritores têm a capacidade de adicionar cores tão vivas à triste escuridão da realidade, de transformar o repugnante no belo, de transportar o lamentável para o campo da admiração. Dentre os poucos “artistas da miséria” que demonstrem o talento do escritor francês é possível citar Charles Dickens que com obras como Um Conto de Natal, Oliver Twist e Grandes Esperanças consegue retratar a mesma marginalização humana, disfarçada com “efeito colateral do progresso”, de forma igualmente admirável. Apesar de ser uma obra do século XIX seu tema é bastante atual: em vários momentos a narrativa deixa o campo da literatura romântica e parte para uma analise social profunda, deixando de lado a frieza das estatísticas e se concentrando na situação enfrentada pelos miseráveis da velha Paris e das cidades do interior. O processo de industrialização que tomou forma nos séculos XVIII e XIX fez das grandes cidades um atrativo para a massa de camponeses vivendo em condições rurais desumanas. O êxodo rural em direção aos aglomerados industriais urbanos inflou a massa de assalariados submetidos a extensas jornadas e salários muito inferiores a uma condição de subsistência básica; diante de tal situação a expansão da miséria seria um resultado lógico. As condições sociais expostas pelo autor são basicamente as mesmas encontradas nos dias de hoje. Os tempos eram outros, mas os erros são os mesmos!
É claro que uma obra que explora a triste realidade de milhões de anônimos, seja nos séculos passados ou no atual, não poderia deixar de ser carregada de religiosidade e do sentimento cristão. Victor Hugo explora tanto o egoísmo vil da sociedade quanto o caráter de cada individuo que nela habita sem, no entanto, condicionar a formação de caráter pessoal ao comportamento da sociedade que o cerca. O que torna Os Miseráveis uma obra singular é o fato de que nas suas mais de mil e oitocentas paginas a miséria e dissecada em suas diversas variáveis tendo como pano de fundo a belíssima, embora sangrenta, historia francesa; como se pode ver trata-se de uma obra que se sustenta sobre paradoxos. Victor Hugo não padece do mal que acomete muitos textos, onde o autor tenta a todo custo induzir a simpatia do leitor por seu personagem principal. Em Os Miseráveis os personagens falam por si mesmos e são tão bem construídos que a simpatia do leitor, por um ou outro, surge naturalmente. Esse é inclusive um dos pontos forte da obra, pois seu amplo número de personagens alimenta um eterno debate em torno da profundidade psicológica de cada um.
É impossível ler as mais de mil e oitocentas paginas da obra, fruto de quase trinta anos de trabalho do autor (Victor Hugo começou a escrever Os Miseráveis em 1824 e só terminou em 1853), sem se emocionar com o calvário de Jean Valjean, não se apaixonar pelo esperto Gavroche, compreender a postura aparentemente correta de Javert, sentir compaixão pela pobre Eponine e pela desafortunada Fantine, como não admirar a postura dos defensores das barricadas no belíssimo capitulo “As grandezas do desespero”. Como não imortalizar na memória personagens tão completos e dignos de serem imortalizados. E como não se encantar pela grandiosidade de caráter do bispo de Digne, Monsenhor Bienvenu. Estruturalmente a obra se divide em cinco partes, ou cinco livros, na seguinte ordem:
Fantine;
Cosete;
Marius;
O idílio da Rua Plumet e a Epopéia da Rua Saint Denis;
Jean Valjean.
Cada parte possui seu clímax e nenhuma delas perde para as demais no quesito qualidade. O núcleo da obra se constrói nas duas primeiras partes (Fantine e Cosete) onde o fio narrativo gira em torno de três personagens: Jean Valjean, Javert e Fantine. Nestas duas partes iniciais Jean Valjean e Javert agem como protagonista e antagonista, Fantine surge como uma espécie de resultado do embate entre ambos, embora sua historia já houvesse sido construída pelo autor sem que os dois personagens principais tivessem exercido algum tipo de influência sobre ela.
COSETTE
Jean Valjean, o grande protagonista da obra, é inicialmente descrito como alguém mais próximo de um animal selvagem acuado e maltratado - de um lado pela brutalidade desproporcional da lei e do outro pelo desprezo da sociedade - do que de um homem. Ao final da obra o personagem emociona o leitor por sua grandeza em meio à tamanha adversidade; a partir daí se imortaliza como um ícone de fé, força e esperança. Jean Valjean teria nascido em uma família de camponeses pobres; bem cedo ele teria perdido o pai e a mãe, ficando sozinho com sua irmã e o bebê desta. Durante um inverno rigoroso Valjean não teria conseguido encontrar trabalho o que o levou a cometer seu crime: roubou um pão. Isso teria acontecido no ano de 1795, em plena Revolução Francesa, embora o período de glamour dos San-Cullotes já houvesse passado. Em função do roubo foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados. Viu-se privado de sua liberdade e de seu nome, sendo chamado de número 24601. Valjean passaria 19 anos preso em função de inúmeras tentativas de fuga. Em uma passagem da obra Victor Hugo questiona a postura social de sua época:
“Pode a sociedade humana ter o direito de sacrificar seus membros, ora pela sua incompreensível imprevidência, ora pela sua impiedosa previdência acorrentado indefinidamente um homem entre essa falta e esse excesso, falta de trabalho e excesso de castigo?”
Certo de que seu crime era insignificante diante do tamanho da punição Jean Valjean condena a sociedade ao seu ódio. Aqui Victor Hugo expõe o julgamento dos homens ao crime, ao mesmo tempo em que o criminoso julga sua condenação; no primeiro caso o julgamento se baseia no ideal de justiça, no segundo é a ausência desta que é colocada sob questionamento.
“A cólera pode ser louca e inconsequente; pode a gente irritar-se sem motivo; mas a indignação só é possível quando se está de algum modo com a razão: Jean Valjean sentia-se indignado.”
Por trás do calvário do personagem principal se esconde a grande tese da obra: a de que um ato de misericórdia é capaz de regenerar a alma que aparentemente havia atingido o limite maximo de sua depravação. Valjean é o personagem que durante toda a narrativa nunca esteve livre; ao deixar a prisão permaneceu preso ao passado e a promessa de se tornar um novo homem, graças a uma atitude altruísta de um bispo chamado Charles François Bienvenu Myriel, que surge logo nas primeiras palavras que iniciam a obra. Em umas das mais belas passagens Victor Hugo descreve as dores da liberdade da consciência:
“A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentações; a fornalha dos sonhos, o antro das idéias de que temos vergonha: é o pandemônio dos sofrimentos, o campo de batalha das paixões. Experimentem, em certas horas, penetrar através da face lívida de um ser humano que reflete, olhar no seu intimo, observar sua alma e examinar essa escuridão. Ali sob aparente silencio, há combates de gigantes(...) Que coisa mais sombria é esse infinito que todo homem leva em si mesmo pelo qual desesperadamente mede os desejos de seu cérebro e as ações de sua vida.”
O tema mais recorrente no texto é a perseguição implacável do inspetor Javert a Jean Valjean. Obcecado por seu papel no cumprimento da lei, Javert se mantém no encalço de Valjean mesmo através dos anos. Nascido em uma prisão, Javert era filho de uma cartomante e de um condenado e assim como Jean Valjean julgou a sociedade por meio do prisma de sua própria existência. Para Javert a sociedade se dividia em apenas dois segmentos completamente opostos - algo compreensível quando se considera seu caráter de extremos - e igualmente distantes: o certo e o errado. Javert possuía sentimentos bons que eram corrompidos por seus exageros.
O que torna o personagem tão fascinante é o paradoxo das características que compõem o seu ser: impiedoso, humano, serio, recluso, excêntrico, humilde, austero, virtuoso, não possuía distrações, honesto. Javert valorizava mais os pensamentos que as emoções, importava-se mais em saber o que um homem pensava e negligenciava o que sentia; subjugava o emocional, que considerava um capricho da vaidade humana, em prol do racional; enfim, Javert é um retrato daquilo que somos: simultaneamente anjos e demônios, famintos insaciáveis, racionais quando nos convêm, simpáticos e antipáticos, corretos e incorretos, marginais e cidadãos ou simplesmente humanos, com todos os paradoxos que se escondem por traz desta palavra. Apesar de tudo Javert era do ponto de vista moral um homem bom, embora seu comportamento nos leve a um julgamento fortemente negativo de sua figura. Neste ponto Victor Hugo entra em um campo filosófico muito explorado e que tem por propósito delimitar a definição de “bom” e “mau”, considerando todos os campos aplicáveis a esta adjetivação.
Neste ponto o debate sobre o caráter de Javert apresenta uma questão que só pode ser respondida quando não restam duvidas sobre determinada indagação, bastante polemica por sinal: o que de fato define alguém como bom? Seriam suas atitudes? Seriam somente suas atitudes? A moralidade de uma ação, aparentemente boa, tem muito mais relevância na definição do caráter. Uma ação pode ser boa, mas moralmente condenável. Todas essas considerações tornam a definição entre bem e mal muito mais complexas do que parece. Javert pode ser o antagonista da obra, mas não o seu maior vilão.
CENA DO MUSICAL DE 2012
Considerando-se a genialidade de Victor Hugo, e o papel de ambos os personagens (Valjean e Javert) na obra, seria essa relação fugitivo criminoso apenas a interação protagonista antagonista existente em todas as narrativas do gênero? Sei das possibilidades de me deixar levar rumo a deduções errôneas, porem, uma análise criteriosa da obra incitar a responder a pergunta de forma negativa. O autor parece querer mostrar como dois seres, muito semelhantes no que diz respeito a concepção que fazem da sociedade, podem alterar seus valores mediante ações altruístas e misericordiosas. A esperança é algo que ecoa por todas as paginas e no caso entre Valjean e Javert ela é o principal produto do autor: a esperança de que a mais depravada das almas pode ser regatada da escuridão decorrente do julgamento social.
No inicio da obra Javert e Valjean compartilham da mesma visão de mundo e da mesma miséria de sentimentos. No plano cognitivo ambos são muito semelhantes e determinados e é justamente neste ponto que a historia se bifurca colocando ambos em rumos opostos. Valjean não acreditava em justiça e muito menos em ações desinteressadas, no entanto, o encontro com o bispo de Myriel mudou sua forma de ver a sociedade e de se comportar nela. A mais pobre das almas foi salva por um simples ato de misericórdia. O mesmo não aconteceu com Javert! Determinadas circunstancias são capazes de alimentar a esperança ou a incerteza. Dentre o amplo conjunto de variáveis capazes de produzir tais efeitos uma se destaca por sua singular capacidade de direcionar a ação no caminho da reflexão: o improvável. Quando o improvável deixa o campo das possibilidades e se estabelece como realidade o julgamento individual se enfraquece diante da chuva de questionamentos impostos pela natureza humana. O personagem Javert, tão certo de sua postura como defensor da lei é levado ao suicídio quando o que julgava improvável acontece: passa a admirar um criminoso.
Toda atividade introspectiva possui uma lógica interna que obedece a padrões mentais bastante específicos. Quando essa lógica é quebrada a mente procura se reorganizar rapidamente gerando desorientação e respondendo com atitudes precipitadas e na maioria das vezes radicais. Não é minha intenção interpretar o inigualável romance de Victor Hugo sob o prisma Freudiano ou de análises psicológicas intermináveis e cansativas, mas existem questões que por sua constante evidência, pedem, se não respostas, ao menos convicções.
Em Os Miseráveis vemos uma sociedade ramificada entre a inveja e o desprezo, sentimentos que o autor usa para descrever a relação estabelecida entre três personagens ainda em tenra idade. Vários personagens são assolados não apenas pela miséria material, mas também pela miséria afetiva, infinitamente mais danosa ao caráter que a primeira. A pobre Eponine é uma personagem que embora não se destaque como os demais se torna imortal por seu destino trágico. Dotada de uma voz rouca, pele manchada pelo sol e vestindo trapos, Eponine é o retrato da sonhadora adolescentes que delega o sofrimento causado por sua condição social ao segundo plano, enquanto sofre de um amor mal correspondido pelo jovem Marius Pontmercy.
MARIUS E EPONINE
Marius Pontmercy era um estudante de direito, proveniente de uma família rica, mas que por um desentendimento com o avô havia passado a residir em uma hospedaria pobre, ganhando a vida com textos e traduções. Declarava-se um democrata-bonapartista e graças a sua amizade com Courfeyrac, Marius foi apresentado aos demais membros da sociedade ABC.
A sociedade de amigos do ABC (o nome é devido ao som produzido pela pronuncia das letras: abaissé, que em francês significa rebaixado ou humilhado) é formada por um grupo de estudantes que se reuniam no Café Musain. Todos eles filhos da Revolução Francesa segundo Victor Hugo: Enjolras Combeferre, Jean Prouvaire, Feuilly, Coufeyrac, Bahorel, Lesgle, Joly e Grantaire. Esse núcleo é responsável pelos acontecimentos que engrandecem imensamente a obra: a luta nas barricadas em junho de 1832. O capitulo “As grandezas do desespero”, presente na quarta parte do livro é um dos mais sublimes da literatura universal. É notável a quantidade de traços biográficos do próprio Victor Hugo no personagem Marius. Seu desentendimento família, sua vida dura longe de casa – a descrição das penúrias sofridas por Marius são tão vivas que chegam a emocionar o leitor – são traços vividos pelo próprio Victor Hugo em sua juventude.
Na terceira parte do livro (Marius) o autor expande os limites da narrativa expondo o verdadeiro apelo social da obra. A partir daí cada personagem é construído de modo que represente um micro cosmos da sociedade pobre parisiense do século XIX. As grandes divagações associadas aos excessos descritivos do autor, presentes ao longo de toda a obra, se tornam mais presentes nesse ponto da narrativa. Essa descrição generosa, que para muitos leitores pode parecer enfadonho e cansativo, é fundamental para a construção dos personagens e da atmosfera da suja e violenta Paris do século XIX. O que alguns caracterizariam como narrativa prolixa é na verdade a essência da obra.
A caracterização dos meninos de Rua de Paris, que pode parecer redundante, é na verdade o prólogo de uma narrativa que se afunila até se concentrar num dos mais conhecidos personagens da obra, seja por seu destino trágico ou por sua personalidade cativante: Gavroche. Apesar de dramática a historia de Gavroche mantêm o colorido e a velocidade inerentes aos primeiros anos de vida e representa o retrato da miséria infantil. O jovem morador de rua, que na verdade mora dentro de um enorme elefante de madeira abandonado em uma praça da cidade, cativa por sua postura diante da realidade. As constantes gírias usadas em demasia pelo personagem contribuem para criar uma identidade própria dos moradores de rua.
São inúmeros os personagens dentre os quais podem ser citados os inescrupulosos Thenardier, o Sr. Mabeuf a pequena Cossete, que envelhece na narrativa, atinge a idade adulta e se apaixona pelo jovem Marius, enfim, são imensas as possibilidades de abordagens acerca da obra, seja por sua estética, seja por sua mensagem social ou seja por seu conteúdo psicológico e religioso. É quase inacreditável a capacidade humana de ignorar os infortúnios alheios. O retrato da miséria do século XIX é idêntico ao do século XXI. A teoria da mimese aristotélica parece ter se perdido no tempo. A arte imita a vida para que possamos enxergar nossos erros emoldurados pelo intelecto alheio, mas na enigmática historia social humana os sentimentos antagônicos prevalecem: nos emocionamos com o texto, mas com a realidade sentimos repulsa. Ao menos um leve traço humano se mantém vivo, pois ao relembrar nossa postura é o sentimento de vergonha que se estabelece.
A sociedade em que vivemos morre um pouco a cada dia, destrói um inocente a cada por do sol e como diria Victor Hugo “cada vez que o vento sopra arrasta mais sonhos dos homens que nuvens do céu”. Talvez a pobre Eponine fosse na verdade uma alegoria da sociedade humana, pois durante a implacável luta nas barricadas, Marius olha para a moribunda criatura que acabará de salvar sua vida é pergunta: “o que esta fazendo ai?”. A resposta de Eponine é certamente o destino da nossa sociedade: “morrendo!”.
AUTOR: TIAGO R. CARVALHO
TITULO: Os miseráveis
AUTOR: Victor Hugo
EDITORA: Cosac Naify, 2009
3º Edição
TRADUÇÃO: Frederico Ozanam pessoa de Barros

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