domingo, 24 de agosto de 2014

A REVOLUÇÃO COMO METÁFORA: AS TRÊS FACES DE UMA AMIZADE


“(...) ficava em uma janela das Tulherias, observando as carroças fazer seu percurso de morte; às vezes às seguia ate o final do trajeto e misturava-se a multidão. Ouviu falar de esposas que denunciavam seus maridos ao Tribunal, e maridos que denunciavam as esposas; mães que ofereciam os filhos à justiça Nacional e filhos que traíam os pais. Viu mulheres com bebes recém-nascidos amamentando até a carroça chegar. Viu homens e mulheres escorregarem e caírem sobre o sangue derramado de seus amigos, e os carrascos erguerem-nos pelos braços amarrados. Viu cabeças pingando sangue serem levantadas para a multidão olhar. - Por que você se força a ver essas coisas? – alguém lhe perguntou. - Estou aprendendo a morrer.”
- Herault de Séchelles
“Você acha que lealdade é encobrir os fatos, fingir que a razão e a justiça prevalecem? (...)Porque fizemos a revolução? Pensei que fosse para combater a opressão. Pensei que fosse para nos libertar da tirania. Mas isso é tirania. (...) Já ouve quem matasse pelo poder, por ganância e por ânsia de sangue, mas mostre outra ditadura que mata com eficiência, mas se encanta com a virtude e ostenta seus ideais sobre túmulos abertos. Nos dizemos que fazemos tudo para preservar a Revolução, mas a Revolução nada mais é agora que um cadáver que ainda vive.”
- Camile Desmoulins a Robespierre.
“Você é um aleijado(...) Não é Couthon que é aleijado, é você. Será que não sabe, Robespierre, não sabe que há algo errado com você? Nunca se pergunta o que Deus omitiu na sua criação? (...) Não sei se você é real, vejo-o andar e falar, mas será que existe vida aí dentro?”
- Danton a Robespierre
“Eu tenho vida! Eu tenho vida. A meu modo.”
- Robespierre a Danton
Na Paris de 1789 a violência é justificada! Sua aparente amoralidade desaparece diante do novo significado que lhe é atribuído pela ideologia revolucionária. O resultado não poderia ser diferente de um quadro urbano violento, radical e intolerante; moldura perfeita para um romance histórico de tirar o fôlego.
Em "A sombra da Guilhotina" a escritora Hilary Mantel narra os eventos por trás da Revolução Francesa a partir de três dos seus mais conhecidos artífices: Camille Desmoulins (jornalista competente e escritor talentoso), Maximilien Robespierre (figura idealista e dono de uma retórica afiada) e Jacques Danton (advogado provinciano e agitador sem igual). Trata-se de um imenso romance político recheado de traições, idealismos, paixões e diálogos empolgantes.
A intercalação da narrativa em primeira e terceira pessoa é apenas um dos inúmeros pontos positivos da obra. A autora utiliza a narração onisciente como amparo para interações verbais recheadas de ironia e sarcasmo, quebrando um pouco da formalidade dos romances escritos sobre a pressão da veracidade dos fatos históricos. A onisciência, e a forma como foi articulada, deixou a narrativa não apenas envolvente, e ágil, mas também artificiosa.
A revolução serve como pano de fundo para a relação de amizade dos três protagonistas. À medida que acompanhamos os primeiros anos de vida dos três jovens, consagrados pela historia graças à ousadia com que levaram a termo seus propósitos, vemos a Revolução se aproximar lentamente no rastro deixado por uma monarquia desestruturada e financeiramente arrasada. Passando pela infância e pela adolescência será logo nos primeiros anos da vida adulta que vemos a tensão se estabelecer no seio da relação de amizade entre eles. “Vejo o espinho da rosa. Nesses buquês que você me oferece.”, teria escrito Robespierre em um de seus poemas.
Mas nem só de protagonistas se faz uma grande obra. A grande quantidade de personagens do núcleo paralelo amadurece muito ao longo do texto. Lucile, esposa de Camile, uma espécie de personagem tampão e entediante no inicio acaba por finalmente conquistar seu espaço; Gabriele, esposa de Danton, vitima da fama de libertinagem de seu marido; a intempestiva Théroigne de Méricourt e o que dizer da inigualável Manon Roland, autodidata, dona de uma inteligência notável, leitora apaixonada de Rousseau e Plutarco, cuja infelicidade gerada por um casamento com um homem de idade avançada não a impediu de participar ativamente do contexto político de sua época. “Liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome!” – teria dito diante da iminente execução na guilhotina.
Marat, personagem que a própria autora considera como seu “convidado especial”, devido a suas aparições ocasionais, protagoniza um dos momentos mais intensos de toda a obra: Ao propor o fim da imunidade parlamentar dos deputados ele buscava alargar as margens de atuação do Tribunal Revolucionário para o centro do cenário político.
O lendário verão de 1793 marcaria o fim da aparente unanimidade política, destroçada pelo peso implacável da institucionalização do Terror. É aqui que as divergências entre Danton, Robespierre e Desmoulins se manifestam no plano da política. A amizade, construída pela admiração recíproca, aos poucos se torna mais intensa, não pela afeição inicial, mas pelo medo justificado a partir do nascimento da rivalidade. Em síntese Hilary Mantel conseguiu demonstrar o poder devastador da polaridade como essência das relações humanas.
A autora faz ressonância às palavras de Rousseau, pois assim como o rigor da matemática nasceu do caos e da falta de lógica, quase sempre são os bons sentimentos mal dirigidos que culminam com a implantação do mal. “São vocês, idealistas, que se tornam os maiores tiranos.” – profetiza Danton em dado momento.
Em meio à pseudo-realidade da soberania popular, impulsionada pelo peso das circunstancias, vemos a luta de três homens, cuja relação, edificada sob um passado regido pela monarquia, se desfaz numa luta desesperada diante da “justiça, imediata, severa, e inflexível” do Tribunal Revolucionário, tendo a paixão como arma e a Revolução como metáfora. Nenhum deles jamais ousou imaginar em seus anos de juventude que um dia veriam nascer a tão sonhada liberdade a sombra da guilhotina.
AUTOR: TIAGO RODRIGUES CARVALHO
SOMBRA DA GUILHOTINA, A
Autor: MANTEL, HILARY
Tradutor: WHATELY, VERA
Editora: RECORD
Número de páginas: 784

AS CORES DA ALMA: VAN GOGH - UMA VIDA


“A arte é o coeficiente individual do erro (...) no esforço de atingir a expressão da forma.”
- W. Sickert
“O que caracterizava sua obra como um todo é seu excesso, excesso de força, de nervosismo, a violência de expressão.”
- Albert Aurier
A religião deixa um vazio que a ciência, apesar de sua lógica, não consegue preencher. Seria a arte a única capaz de ocupar essa lacuna da típica inconstância da alma? O mundo humano é predominantemente simbólico. Nossa forma de comunicação, escrita ou verbal, se baseia em relações de semelhança, arbitrariamente definidas, entre o objeto e seu signo linguístico. O que torna a arte, sobretudo as visuais, uma forma única de expressão inconsciente da psique humana é justamente a liberdade que o artista tem em redefinir essas relações de semelhança entre o objeto real e a imagem que se faz dele através de diferentes perspectivas.
A história da arte não poderia ser escrita senão por aqueles, que de alguma forma, ousaram distorcer a realidade por meio de seus traços e suas cores. Vincent Van Gogh, o “gênio louco” como também é conhecido, se tornou um dos mais fascinantes representantes das artes visuais de seu tempo. O garoto estranho, de cabelos ruivos flamejantes, “teimoso”, “desobediente” e de “temperamento difícil” não era nada promissor aos olhos de seu pai, um rigoroso pastor protestante. Ninguém poderia imaginar que aquela existência sem raízes da sua juventude culminaria num artista incompreendido que pintava uma realidade individual e ao mesmo tempo abstrata.
Após vários anos de pesquisa, Steven Naifeh e Gregory White Smith concluíram aquela que já esta sendo chamada de a biografia definitiva sobre o “poeta dos ciprestes e girassóis”. Em “Van Gogh, a vida” eles apresentam um imenso quadro descritivo sobre a vida de um das mais intrigantes personalidades da história da arte. A obra causou polemica, principalmente na Holanda, devido à proposta ousada dos autores de questionar o suicídio de Van Gogh, alegando que o ato teria sido acidental.
Apesar dessa proposta contra-factual a obra é sem duvida uma das mais belas e bem escritas biografias já lançadas. Através da imensa quantidade de correspondências trocadas entre Vincent e seu irmão Theo, Naifeh e Smith pintam um quadro absurdamente realista da vida assolada por tragédias desse gênio que sempre admirou da beleza da luz, mas que habitou na escuridão indescritível do inconsciente.
A obra, ricamente ilustrada, aborda o relacionamento difícil de Vincent com o pai, suas obsessões religiosas, a reprovação materna, a indiferença dos parentes, a vida oscilante entre os bordeis parisienses e o ateliê de pintura, a revolução artística representada pelo Impressionismo, seus relacionamentos amorosos, suas repentinas crises epiléticas e depressivas, as constantes internações nos hospitais psiquiátricos até o seu suicídio na tarde de 29 de julho de 1890.
Em “Van Gogh, a vida” temos o retrato de um homem que ao mergulhar numa espiral de auto-reprovação terminou como espectador de sua própria loucura e de sua fragilidade diante de uma sociedade demente e marginalizada. Sua sensibilidade foi capaz de capturar a inconstância das formas e condensá-la numa forma única de representação visual. Seu exagero nas cores, sobretudo do amarelo, cor do sol e das chamas, e do azul, cor do céu e dos mares, se deve a essa luta constante para encontrar a luz de infinitas possibilidades que estava além de sua realidade abstrata. Sua arte emerge como um contorno claro e berrante de seus aspectos inconscientes. “Em minha loucura, meus pensamentos singraram muitos mares.” – teria escrito Vincent em uma carta para seu irmão Theo.
Ao longo da leitura nos maravilhamos em pensar que mente humana encontrou nas artes visuais um meio de manifestar aquilo que a torna uma singularidade absoluta dentre as criações da natureza, isto é sua lógica fundamental, e ao mesmo tempo sua nêmeses, cujo irracionalismo típico é capaz de permitir as maiores alegrias e provocar as maiores tragédias. O contraste de cores, nesse caso, não pode ser visto apenas com um recurso estético, ele representa aquilo que caracteriza a essência humana: o conflito.
A arte de Van Gogh não possuí um fim em si mesma; a profusão de cores desaparece assim que desviamos os olhos de suas telas, mas o sublime permanece. Em suas pinceladas vemos a simples ilusão por trás do obvio. Aquele que durante a vida teve a solidão como companheira e a arte como amparo não poderia imaginar que construía sobre seus fracassos o paradoxo artististico mais impressionante de todos: sua história foi na realidade sua mais grandiosa obra prima!
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
VAN GOGH - A vida
Steven Naifeh e Gregory White Smith
Páginas: 1128
Acabamento: Capa dura
Selo: Companhia das Letras

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A BANALIDADE DO MAL: AS ENTREVISTAS DE NUREMBERG


Leon Goldensohn, de 34 anos, formado em psiquiatria pela Universidade Estadual de Ohio havia servido como oficial do exercito americano durante a Segunda Guerra Mundial. Destacado para o presídio de Nuremberg, com o objetivo de cuidar da saúde física e mental dos 22 membros do alto escalão nazista, presos ao final do conflito e acusados de cometerem crimes de guerra, sentiu-se atraído pelo “tesouro psicológico” e pela perspectiva de desvendar os supostos aspectos ocultos do mal. Nessa busca por evidências patológicas que explicassem o nível de depravação do nazismo, Goldensohn acabou redigindo centenas de paginas com suas anotações pessoais cujo conteúdo revela, entre outras coisas, uma singular particularidade do mal: a ausência de empatia.
Nas mais de 500 paginas do texto vemos homens, acusados de cometerem as maiores atrocidades de seu tempo, divagarem sobre suas famílias, seus pais, sua infância, problemas de saúde, casamentos conturbados, a perda dos filhos durante o conflito, seu nacionalismo exacerbado e seu senso de compromisso com a pátria. Goldensohn não se eximiu do impulso de anotar suas impressões particulares acerca dos entrevistados. Karl Doenitz, comandante da marinha alemã, é descrito como um sujeito “polido, de uma afabilidade meio suspeita, fala um inglês quase perfeito, mas é preciso deixá-lo bem à vontade, senão não abre a boca”; Hermann Goering, comandante chefe da força aérea nazista, se traduz na imagem de um homem com “humor instável e infantil nas atitudes”; Joachin Von Ribbentrop, Ministro das Relações Exteriores de Hitler, emerge como um homem de aparência “levemente depressiva, embora sorria com frequência ou ria agradavelmente”.
Goldensohn, que nunca anotava nada na frente de seus pacientes, ou cobaias como parece mais apropriado, conseguiu construir uma atmosfera de informalidade cujo propósito era libertar a mente das amarras da consciência. Seu método produziu relatos diversos, desde o fanatismo demonstrado por Julius Streicher, editor do “Der Sturmer” - um dos mais famosos jornais antissemitas da Alemanha, até a chocante e impressionante entrevista com Rudolf Hoess, Tenente general da SS e comandante do campo de extermínio de Auschwitz entre 1940 e 1943. Com uma frieza assustadora Hoess descreve todo o processo de extermínio no maior e mais famoso campo de concentração nazista, desde a chegada das vitimas ao campo até a cremação dos corpos. Os detalhes mórbidos como a medida exata das câmaras de gás, o tempo médio gasto nos “gaseamentos”, o numero de corpos que eram incinerados diariamente até o número exato de funcionários utilizados no processo são descritos com a clássica metodicidade prussiana.
A introdução de Robert Gellately nos fornece um quadro geral sobre as quatro acusações apresentadas pelo tribunal aos réus, bem como detalhes da rotina diária dos prisioneiros e das conturbadas reuniões pré-julgamento entre os aliados ocidentais e os soviéticos acerca dos procedimentos jurídicos que deveriam ser adotados. Apegados ao compromisso de impedir que o tribunal fosse visto como uma espécie de “vingança dos vencedores” as autoridades adotaram uma cautela retórica que fica evidente quando se percebe que nenhum dos réus foi acusado formamente de perseguir ou exterminar uma minoria especifica, como os judeus. As palavras “Holocausto” e “Genocídio” nunca foram utilizadas durante as audiências.
A leitura é uma experiência surpreendente, para dizer o mínimo, e bastante reveladora. Em muitos momentos nos sentimos transportados para dentro das celas acompanhando de perto as reinteradas e constantes alegações de inocência de homens como Ernest Kaltenbrunner cuja audácia associada a ausência de qualquer resquício de consciência foi capaz de dizer em sua frágil defesa: “Sou visto como outro Himmler” (sorrisos.) ”Mas não sou. Os jornais fazem de mim um criminoso. Nunca matei ninguém.”
POR TIAGO RODRIGUES CARVALHO
AS ENTREVISTAS DE NUREMBERG
Autor: GOLDENSOHN, LEON
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
552 Paginas.

terça-feira, 20 de maio de 2014

OS DEMÔNIOS DE DOSTOIEVSKI: A SINFONIA DO TORMENTO



“Volto à pátria e verifico que o crime já não é mais uma anomalia, mas uma prova do bom senso.”
- Piotr Stepanovitch
No século XIX centenas de grupos revolucionários radicais – niilistas, socialistas e anarquistas – agitaram o cenário político da Rússia imperial. Em 21 de novembro de 1869 o estudante S.G. Nietchaiev, na companhia de mais quatro membros da organização “Justiça sumaria do povo” (Naródnaia Raspava) assassinaram o estudante I. I. Ivanov. O crime teve repercussão em todo o país. Preocupado com os rumos destrutivos dos movimentos da esquerda radical, Dostoievski escreve o magistral romance “Os Demonios”, cujo objetivo é expor a face dos verdadeiros demônios da sociedade de sua época: o fanatismo, a busca por dominação absoluta, a subordinação total do individuo a lógica e ao rigor cientifico e o estoicismo político diante de um propósito comum.
O próprio ateísmo é duramente atacado pelo autor que defende a importância da fé religiosa na constituição de uma esfera moral. Embora se trate de um conceito primitivo e contestado por filósofos contemporâneos, como o francês Jean Paul Sartre, essa noção de que a fé purifica o homem ganhou ressonância nas palavras de um grande escritor. Não se trata apenas de uma reprodução literária de um fato real ou de uma simples propaganda antirradical e anti-ateísta. Dostoievski vai muito além desse conceito inicial criando uma obra que explora os perigos da sociedade russa de sua época.
Stiepan Trofimovitch é um professor acadêmico que havia construído uma carreira promissora no exterior. Apesar desse seu aparente sucesso profissional seus dois casamentos haviam sido um fracasso. Devido a “um turbilhão de circunstancias” - que o narrador não acha apropriado esclarecer - Stiepan é afastado de seu cargo na universidade e parte para a propriedade Skvoriechniki, uma magnífica fazenda da família Stavroguin.
A proprietária era uma rica viúva chamada Varvara Pietrovna Stavroguina, amiga de longa data de Stiepan, descrita como ossuda, de rosto longo e “rancorosa ao ponto do improvável”. Ambos possuíam uma estranha relação de amizade. No passado Stiepan havia recusado duas propostas da rica e solitária viúva para que se encarregar-se da educação particular de seu único filho. Após a morte de sua segunda esposa Stiepan, sem emprego e sem saída, resolve aceitar o convite.
Assim que chega a Skvoriechniki, Stiepan se encontra diante de uma segunda proposta, dessa vez de casamento. A ideia teria partido da própria Varvara que queria unir Stiepan a uma mulher chamada Daria Pavlovna. Varvara escondia suas reais intenções por trás dessa união arranjada: circulavam rumores de que seu filho já havia tido um relacionamento com Daria no passado e diante da expectativa do seu retorno, Varvara pretendia retirar Daria do caminho de seu único herdeiro. Stiepan, que parecia nutrir um amor platônico por Varvara sofre com a ideia do casamento, mas não encontra meios de recusar a união. Esse dilema familiar que inicia a obra “Os Demônios” se arrasta até o primeiro marco importante da obra: a recepção oficial do noivado de Daria e Stiepan. Aqui os dois principais personagens aparecem: Piotr Stiepánovitch e Nicolai Stavróguin, filhos de Stiepan e Varvara respectivamente.
Nicolai, um jovem de 25 anos, bastante conhecido por sua libertinagem havia levantado suspeitas depois que um envelope com dinheiro enviado em seu nome a Maria Timofêievna, uma mulher extremamente magra, de pescoço longo, coxa e aparentemente louca, havia sido interceptado pela própria Varvara. Os boatos de que Nicolai teria se casado em segredo com Maria preocupavam sua mãe que traçava planos diferentes para seu filho. Esse típico drama familiar da sociedade europeia do século XIX é apenas um preâmbulo do magistral romance de Fiodor Dostoievski.
Dividido em 23 capítulos e três partes a obra possui um imenso quadro de personagens, todos eles descritos em sua forma física, moral e social, tendo, portanto uma densidade absurda e fascinante. Essa construção em três dimensões expõe uma valorização estética, que na realidade está subjugada ao conteúdo moralizante da obra. Trata-se, sobretudo, de um romance da moral, aqui analisada em termos políticos é praticamente condicionada aos valores religiosos do individuo como ser social.
O que começa como uma espécie de crônica do mundo burguês, cômica e com certa dose de sarcasmo, sofre uma reviravolta espetacular a partir da terceira parte, marco clássico da obra, onde cada personagem se desdobra e revela sua verdadeira identidade moral. O autor se vale de sua genialidade criativa e nos expõe a verdade por trás da face social de cada personagem, alimentando o típico comportamento humano de consolidar a impressão inicial como uma verdade absoluta. É ali que os verdadeiros focos da narrativa emergem em sua plenitude: o niilismo - movimento caracterizado pela descrença absoluta -, e o radicalismo revolucionário.
Stepanovitch e Stavróguin fazem parte de um grupo niilista de proporções internacionais que os encarrega de iniciar uma revolução na cidade onde vivem. Juntos eles formam um grupo radical de indivíduos desprovidos de qualquer traço moralizante, movidos unicamente por um propósito comum. Chigalov, o ideólogo do grupo, teoriza um método de governo extremamente autoritário onde nove décimos da sociedade seria submetida ao controle rigoroso do décimo restante, composta pela elite intelectual.
“No esquema dele [Chigailov] cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão, nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o Chigaliovismo.”
Kirilov, tomado pelo “demônio de voluntarismo”, defende a teoria segundo a qual o homem que comete suicídio se torna Deus:
“Se Deus existe, toda vontade lhe pertence, e fora dessa vontade nada posso. Se ele não existe, toda vontade me pertence, e devo proclamar minha própria vontade. (...) Tenho que meter uma bala na cabeça porque o suicídio e a manifestação suprema da vontade.(...) Deus é a dor do medo da morte. Quem vence a dor e o medo se tornará Deus.”
Chátov acredita na existência de um “Deus nacional”, sendo este representado pela supremacia de um grande povo sobre os povos restantes. Além destes estão Virguinski, Liputin, Tolkatchenko, Erkel, e os dois protagonistas: o libertino Stavróguin e o insuperável Stepanovitch, a mente mais perversa da obra e um dos personagens mais diabólicos da literatura universal. Todos eles se admiram e se odeiam com igual intensidade dentro de um circulo restrito onde a idéia de revolução se deforma diante de uma lógica tão absurda que se torna destrutiva. Para cada um deles a violência é o aparo lógico de um dogmatismo que, apesar de embrionário, já manifesta sua natureza refrataria e intolerante. O ceticismo radical que os domina só realça o típico ser dostoievskano, em movimento constante entre a certeza e a incerteza.
Da terceira parte em diante o romance mergulha num turbilhão de conspirações, assassinatos, traições, suicídios até atingir o ápice da narrativa: o incêndio que toma conta da cidade e cujo objetivo era desviar a atenção da população para longe do assassinato brutal que acontecia dentro de uma das residências de um quarteirão afastado. Vemos uma sequência de atos deploráveis e indescritíveis, como o abuso de uma menina de apenas doze anos por um dos integrantes do grupo e cujo tormento moral o leva ao suicídio. O caos, a destruição, a descrença e o estoicismo fanático dão um ritmo alucinante à narrativa cujo desfecho não poderia ser menos trágico.
Ler “Os Demônios” e adentrar numa narrativa pesada, intrigante e apaixonante do inicio ao fim. Ao perceber que as ações humanas não possuem a moral como regra única, Dostoievski soube explorar esse aspecto negro e moldá-lo como recurso de criação artística antecipando a tragédia que se abateria sobre o século XX, imposta pelos exemplos de fanatismo político e ideológico como o Nazismo e o Stalinismo. Através da exposição dos males da modernidade ele extrapolou os limites de criação literária e compôs o que a historiadora Anna Carolina Huguenin chamou de “sinfonia de vozes atormentadas”.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Pintura de A. K. Savrasov – “O retorno das gralhas”: a desolação da paisagem e o mau agouro representado pelas gralhas descrevem o clima tenso e carregado do romance de Dostoievski.
Os Demônios – Fiódor Dostoievski
Editora 34
Tradução: Paulo Bezerra
704 paginas

domingo, 27 de abril de 2014

A TRAGEDIA DO PROGRESSO


“Quanto mais uma figura histórica vai ficando estranha e enigmática, mais claramente delineada se torna sua função sociopsicologica”
– Joachin Fest
“A fim de haver tolerância no mundo, uma das coisas a ser ensinadas nas escolas deve ser o habito de ponderar a evidencia e a pratica de não dar total assentimento a proposições que não haja razão para serem aceitas como verdadeiras.”
- Bertrand Russel
Certa vez ao ler “Moby Dyck”, de Herman Melville, fiquei impressionado com a multiplicidade de significados simbólicos que a obra oferece a um leitor atento. A busca pela baleia cachalote branca, única entre os gigantes mamíferos dos mares, é a expressão do fetiche humano pelo controle daquilo que lhe escapa. Em síntese se trata do retrato da impotência diante da ideia de dominação e do controle daquilo, que de alguma forma, se destaca entre os demais. A obsessão e a busca pelo domínio absoluto são o núcleo fundamental sob o qual se constrói o fanatismo.
A história, assim como a arte dramática, possui protagonistas e antagonistas que se digladiam como um produto das massas. Um fato interessante é que o século XX parece negar a qualquer personalidade histórica o papel de protagonista, já o mesmo não acontece com o seu oposto, que de forma incontestável pertence a Hitler. Se entre os historiadores essa definição não é unanime, do ponto de vista daqueles menos obcecados com uma abordagem pragmática dos eventos históricos, sobretudo dos não alemães, essa definição está mais do que correta. O nível de ascendência moral que Hitler era capaz de exercer sobre as massas está além da compreensão de qualquer pessoa que tenha vivido em uma época diferente da sua. “Ele tinha um poder terrível, especialmente nos olhos.” – comentou o ex-ministro das relações exteriores, Joachin Von Ribentrop, ao ser interrogado pelo psiquiatra da prisão de Nuremberg em 1946.
O mito Hitler se reafirma, ano após ano, graças à brutalidade com que o mesmo representou sua própria história. Aqueles que o consideram apenas como louco ou maníaco só fazem aumentar o grau de fascinação que o mesmo continua a exercer. Como um homem louco seria capaz de arrastar uma nação inteira para o turbilhão irrefreável do caos? Loucos são aqueles que se apegam a crença de que o mal se reveste apenas com o manto da insanidade. Na maioria dos casos e na mente racional e pratica que o mal encontra espaço para seus feitos e evidência sua completa e assustadora banalidade. Hitler é tão complexo e denso que nosso léxico ainda não dispõe de um termo que lhe seja aplicável. “Louco” ainda e o termo mais recorrente quando sua imagem é invocada. No entanto defini-lo como um simples lunático ou demente é não apenas uma representação simplista de uma realidade assustadora como também reduz a importância que o momento histórico, representado pelos doze anos do regime nazista, teve na historia da Europa e do mundo.
Os assassinatos cometidos por ordens suas não foram uma chacina generalizada, mas um evento calculado e planejado de forma tão assustadora que seus resultados ainda permanecem como um exemplo da origem primitiva e animalesca dos seres humanos. Essa imagem de um ditador insano ainda é predominante entre a população, assim como também se tornou costumeiro utilizá-lo como representação inequívoca do mal. Por que é tão difícil imputar a Hitler o rotulo da banalidade? Por que precisamos representar seu ódio e sua violência como exemplo dos extremos da natureza maléfica dos seres humanos? Seria esse comportamento uma negação da imagem pessimista que o filosofo Thomas Hobbes tinha do homem como ser social ou uma simples manifestação do maniqueísmo que se apossou da sociedade e passou a reafirmar insistentemente a amplitude do espaço que separa o “bem” do “mal”?
O nazismo em si possui um conceito tão amplo que inevitavelmente remete ao fracasso qualquer tentativa de encerrá-lo numa única linha de raciocínio. Hitler e o fascismo não são necessariamente sinônimos; o fenômeno político não partilha dos mesmos termos de compreensão do fenômeno humano. O nazismo não possui um fim em si mesmo e, portanto, tentar entender o descalabro de sua política com base na biografia de seu ícone máximo parece ser uma atitude equivocada, uma vez que a compreensão do passado em termos íntimos contraria qualquer abordagem pratica dos fatos históricos. A história não se constrói pelos passos de um único homem, é justamente o homem que se constrói a partir do momento histórico que este se insere. A forma como vemos o mundo que nos cerca determina nossa postura diante dele e não o contrario.
Também é completamente infundada a idéia de que o nazismo emergiu no vácuo da expansão do ateísmo. O filosofo Jean Paul Sartre destruiu a falsa noção de que os valores morais se construíam a partir dos costumes e das crenças religiosas. Os valores seriam determinados pelos próprios indivíduos, a revelia dos aspectos coercitivos de seu meio. Na pratica seria o mesmo que definir o mal como um aspecto marginal da natureza humana. Invocar aspectos religiosos para explicar o terror do nazismo está mais relacionado a uma redefinição do conceito de “mal” do que numa suposta explicação das origens do mesmo.
Não é novidade que o século XX foi o século mais ateu da historia. A progressiva perda de fé pelo homem levou a decadência do método de representação do mal por meio de figuras bíblicas. O demônio, da forma como era descrito nas antigas escrituras, não mais se prestava a sua função como administrador da vontade humana. O mal clamava por uma representação mais tangível e que fosse capaz de reafirmar, de forma literal e não mais abstrata, a verdadeira noção do terror. O ateísmo, no entanto, não ditou sozinho as tendências para a redefinição do conceito de mal. Entre aqueles cuja fé parecia inabalável a própria noção de inferno absorvida das escrituras bíblicas, que descreviam almas sofredoras vagando por mares de enxofre incandescente, era por demais abstrata e tão significativamente inimaginável que não mais servia ao seu propósito original. O verdadeiro inferno precisava de um evento histórico que o representasse e pudesse invocar o real significado dessa palavra na mente predominantemente sujeita as sensações. No século XX, ou mais precisamente no período compreendido entre 1900 e 1945, não faltaram acontecimentos capazes de representarem esse ideal de horror e destruição.
Hanna Aredt dizia que o “mal” residia na constante despercionalização dos seres como pessoa. Nos campos de extermínio da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) se via uma reafirmação constante de que os internos eram não apenas repulsivos, mas também desnecessários – embora o uso de sua força de trabalho estabeleça um paradoxo evidente quanto a ultima assertiva.
Hitler não foi o produto de uma sociedade capitalista, predatória e desumana, mas foi o reflexo do que ela tinha de melhor: o progresso da ciência e o costume, tipicamente burguês, de se reafirmar constantemente para se dissociar da massa gigantesca de anônimos. A relação de Hitler com a sociedade burguesa expressa um exemplo que contraria a imagem idealizada do revolucionário do século XX. Em nenhum momento Hitler questionou a existência ou os valores burgueses de sua época. Ele na realidade os colocou como o estilo a ser seguido.
Aparentemente estável e glorioso, o mundo burguês da segunda metade do século XIX já dava sinais de que o século seguinte seria dominado pela violência, pelo preconceito e, sobretudo, pelo medo. Indiretamente o progresso cientifico contribuiu para a intolerância e a destruição sem precedentes que se seguiria: Henri Poícare, ao definir que o tempo e o espaço não eram constantes desafiou a mecânica clássica de Newton, rompendo a suposta estabilidade do mundo físico; Pasteur apavorou a sociedade com a descoberta de que as doenças - muitas delas letais - eram causadas por agentes invisíveis a olho nu; Darwin havia exposto sua teoria da sobrevivência do mais adaptável, criando parâmetros biológicos sobre o qual se assentaram os defensores de uma aparente “superioridade” intelectual de determinados seguimentos sociais; e o que dizer da teoria da degeneração genética do medico francês Benedicte Morel, um especialista em epilepsia latente, cujos resultados seriam visíveis somente no século XX, sob a forma de campos de extermínio.
Não se trata de pregar o repudio ao progresso e a pesquisa cientifica, mas o exato oposto. A ciência nos eleva acima dos preconceitos e nos guia rumo ao esclarecimento fundamental dos propósitos humanos. Mas o fato é que essas conquistas tem um preço. A nêmese da ciência é justamente aquele que distorce seus feitos por ser incapaz de compreendê-los em termos puramente científicos.
A noção abstrata de valor, baseada em atributos físicos, essência fundamental do nazismo, já existia no período “pré-Hitler” e continuou existindo, de forma velada, no período posterior a ele. Hitler não criou uma nova forma de eugenia e de discriminação, ele apenas se amparou em um conceito amplamente difundido e aceito pela maior parte da população europeia e mundial. O próprio anglicanismo exacerbado do primeiro ministro Winston Churchill, e as políticas britânicas de incentivar o casamento de “biótipos perfeitos”, é um exemplo de que a política racista de eugenia não ficou restrita a Alemanha de Hitler.
Alguns acreditam que Hitler foi uma singularidade absoluta por saber utilizar sua angustia e os males sociais de sua época em proveito próprio. Nisto vemos seu valor político na medida em que sua capacidade retórica se funde com os aspectos negativos de seu meio. Seu poder de persuasão se baseava na exposição do obvio – apenas no que diz respeito aos caos econômico – algo que uma vez compreendido pelas massas se desconstruía como problema e emergia como meta a ser superada.
Essa capacidade de compreender e expor a crise econômica, da qual emergiu como produto, fez do fascismo uma opção lógica junto a uma população europeia conservadora e predominantemente anticomunista. O mérito político de Hitler foi sua aguçada capacidade de transpor as angustias da população alemã para um plano pratico. O radicalismo do partido nazista em contraste com os demais partidos da oposição - que insistiam em reafirmar os benefícios da industrialização e se sustentava em promessas de reforma salarial - era nada mais do que a vazão do descontentamento do povo alemão diante de uma crise da qual também haviam contribuído, mas que por conveniência preferiam esquecer. Obviamente que a Alemanha não foi responsável pela crise financeira européia deflagrada pela quebra da bolsa de Nova York, mas as restrições impostas pelo Tratado de Versalhes foram ocasionadas pelo militarismo germânico e pela posterior política agressiva do Kaiser Guilherme II.
Para Hitler a vida dura com privações durante sua juventude em Viena, foi nada mais que a expressão bruta, sem adornos ou atenuantes, de que a vida seria uma eterna luta pela sobrevivência, onde apenas os mais fortes teriam chance. Essa luta constante contra a própria miséria pessoal o convenceu de que cada ser humano deveria crescer por méritos próprios. Essa aceitação do darwinismo social por parte de um homem que sempre foi descrito como um esquisitão solitário ditaria uma das maiores tragédias humanas do século XX. Não se trata de defender a postura do líder nazista, mas de explicar como tamanha brutalidade e desumanidade brotaram a partir de um jovem fracassado em suas aspirações de uma carreira artística. Hitler foi um dos maiores monstros de nossa historia, mas a questão é: até que ponto ele se construiu sob amparo dos preconceitos sociais de sua época?
Hitler nasceu no dia 20 de abril de 1889, numa cidadezinha austríaca chamada Braunau. O ano de 1889 marca o período final da consolidação do liberalismo econômico, embora o período de trinfo do capitalismo tenha chegado ao fim em 1872, marcado por uma profunda crise financeira. O mundo burguês, em sua costumeira arrogância quanto aos seus feitos, já havia estabelecido um dos conceitos mais deploráveis da historia humana: a idéia de que os homens não eram iguais.
A acumulação de capital nas mãos dos grandes magnatas do aço e das ferrovias esbarrava num quadro constrangedor de miséria e pobreza. O liberalismo havia dado uma explicação racional e matemática para o livre mercado, mas não havia conseguido um conceito moral que tornasse a desigualdade aceita como algo natural. No ano de 1848 o período das grandes revoluções liberais havia terminado. A chamada “primavera dos povos” foi o último fôlego da esquerda europeia no sentido de consolidar sua utopia de uma sociedade igualitária; a partir daí os movimentos radicais foram sufocados em nome do “progresso”.
Entre 1848 e 1872 o mundo testemunhou mais guerras e operações militares do que se viu nos trinta anos anteriores e se veriam nos quarenta posteriores. Afastar o terror das revoluções era fundamental para o trinfo da sociedade burguesa; justificar a acumulação de muitos recursos nas mãos de poucos era uma questão determinante. Essa justificação encontrou amparo cientifico no darwinismo social segundo o qual homens de sucesso possuíam qualidades inexistentes naqueles que ocupavam as camadas sociais mais baixas. O sucesso deixava de ser um produto da sorte e do trabalho e passava a ser uma questão puramente biológica e genética. Essa idéia surgida em pleno século XIX ganhou força durante o século XX principalmente na Alemanha, símbolo do progresso cientifico e lar da maioria dos físicos e químicos laureados com o premio Nobel. Essa noção de uma suposta superioridade racial era aceita por boa parte da população; Hitler era apenas um entre uma nação de milhões que acolheram essa visão pseudocientífica.
Hitler sempre foi um visionário; sua ambição não tinha limites, e mesmo diante da imagem inequívoca do fim da estrada continuou avançando apegado à crença de que o chão se reconstruía a sua passagem. Seus projetos arquitetônicos gigantescos e sua visão de um reich que se estenderia do Volga ao Atlântico eram fruto de sua megalomania doentia e de um pragmatismo sem precedentes. Seu carisma era gigantesco assim como seu próprio ego. Não há duvidas de que se considerava um gênio e que, portanto, partilhava da típica autoconfiança burguesa do século anterior. Em uma passagem da obra “Main Kampf” ele escreveu:
“O gênio tem muitas vezes necessidade de uma espécie de choque (...) para emergir, sucede com frequência que na banalidade da vida diária criaturas de valor parecem insignificantes e não ultrapassam o mesmo nível dos que o cercam. Contudo desde que se defrontam com uma situação na qual os outros se mostram indefesos e incapazes, sua natureza genial se revela, surpreendendo assim todas os que até ali só viam mediocridade nelas (...) Se o momento dessa prova reveladora não tivesse acontecido ninguém jamais suspeitaria que a personalidade de um jovem herói se ocultava sob a fisionomia do adolescente imberbe. O golpe súbito e acidental do destino que derruba um faz surgir no outro um espírito indomável.”
Quem poderia imaginar que da lama das trincheiras da primeira grande guerra surgiria um jovem e insignificante soldado cujo propósito seria mergulhar a Europa no mais terrível conflito humano da história, em nome de um velho inimigo da verdade: a convicção. Sua lenda o transformou num ser indecifrável, enigmático, e surpreendentemente interessante. No dia 30 de abril de 1945, quando finalmente colocou fim a própria vida com um tiro na cabeça num bunker imundo da Berlim arrasada pela guerra, Hitler encerrou sua existência como homem e fez nascer o mito. Hoje ainda se perguntam como alguém poderia ser moralmente tão repulsivo. A resposta foi dada pelo próprio Hitler ao dizer que a consciência – algo que Van Gogh chamava de tribunal secreto da alma – era uma invenção judia.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO

quinta-feira, 3 de abril de 2014

BRASIL 1964 - A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO TOTALITARISMO -

“A verdade é que em cada um de nos, bem no fundo existe uma pequena dose de totalitarismo. É a luz estimulante da confiança e da segurança que mantém esse gênio do mal submerso (...) se desaparecerem a confiança e a segurança, não pensem que ele não estará esperando para substituí-la.”
-George F. Kenna
Pode-se questionar até que ponto o regime democrático, sempre vulnerável na medida em que mantém a livre expressão de pensamentos divergentes, está sujeito as reviravoltas políticas ditadas pelo medo ou pelos interesses de uma classe dominante. Nessa disputa quase sempre vemos o surgimento de seu equivalente antagônico, ou seja, o regime totalitário. Embora o totalitarismo seja um fenômeno político associado ao século XX, suas raízes são evidentemente muito mais antigas. Platão, por exemplo, criticou a democracia em sua obra “República” por considerar que o povo não era suficientemente instruído na arte da “ciência política”.
Dentro do contexto da historia de nosso país o período compreendido entre 1964 e 1985, os chamados “anos de chumbo”, ficou marcado por uma oposição quase patológica entre duas doutrinas políticas opostas que se digladiaram como um produto das massas. Diante dessa interpretação dos fatos históricos surge uma indagação: seria o golpe de 1964 um movimento predominantemente militar? A violência política é na maioria dos casos uma resposta para o medo. Novas reivindicações invariavelmente remetem a novas posturas o que cria a falsa ideia de desordem, baderna ou anarquia, na medida em que rompem com os valores éticos cosolidados ao longo dos anos. É justamente esse predomínio do imprevisível que motiva a ação por parte da ala mais conservadora da sociedade. O anticomunismo da direita política praticamente determinou uma postura de confundir o medo legitimo com aquele fabricado nos moldes da Guerra Fria, que pintava a imagem de regimes democráticos encurralados pelo “perigo vermelho”. Esse é um dos motivos que levam a concluir que o golpe militar de 1964 não foi apenas um movimento militar, mas também civil. Basta considerar que as bases teóricas do governo de exceção foram o resgate de valores políticos e sociais tidos como inalienáveis pela elite burguesa e sempre reafirmados pela doutrina militar graças a sua inflexibilidade clássica.
A ideologia socialista ganhou espaço entre os intelectuais Brasileiros graças a um recorde negativo de nosso país: o Brasil sempre foi um exemplo histórico e expressivo de desigualdade social. O terceiro mundo passou a enxergar seu verdadeiro potencial revolucionário a partir da experiência cubana que passou a ditar um modelo radical de reforma social cujos resultados, ainda que infinitamente distantes do ideal de “paraíso do proletariado”, se mostravam aparentemente mais atrativo que o velho e resistente capitalismo, solapado pelo ceticismo global em relação à política norte americana – amparo natural do livre mercado. Boa parte dos integrantes da esquerda política foram moldados pelas reformas do populista Getulio Vargas (1883-1954) cuja base de governo se assentava sobre a mais intensa força política do século XX: o nacionalismo.
Em março de 1964 o Brasil era um barril de pólvora prestes a explodir e seria justamente a postura inovadora com que João Goular resolveu encarar a crise agrária - cuja proposta invariavelmente levaria a uma crise na relação entre os donos da terra e os que a cultivavam - a principal responsável pela centelha detonadora para o golpe. Seriam 21 anos de vergonhosos abusos e falso moralismo. Nem mesmo os êxitos econômicos assombrosos, como o aumento de 10% do PIB – uma façanha somente equiparável aos crescimentos da Alemanha e do Japão pós-guerra – seriam suficientes para apagar a vergonha de um passado cor de chumbo.
A política de linha dura, motivada pelas guerrilhas, começou a ruir a partir do momento em que o governo militar atraiu para si um elevado nível de atenção hostil devido à tentativa de impor uma forma de moral civil construída pela necessidade política e não pelos costumes. Essa proposta absurda trazia em si mesma o fracasso como resultado obvio, pois as ações humanas não possuem a moral como regra única. O comportamento prático é muitas vezes adotado mediante situações onde as convicções particulares não encontram um campo favorável a sua influência. Esse comportamento prático é analisado como objeto de reflexão onde a prática-moral se transforma em teoria-moral. Esse julgamento mental realizado a posteriori, e a revelia das normas sociais, está intimamente relacionado à filosofia de cada individuo e consequentemente se torna incompatível com uma padronização arbitraria. Diante desse obstáculo cognitivo o regime relaxou sua garras e em 1985, para o bem de todos e felicidade geral da nação, deixou de existir. Apesar de ser um evento recente de nossa historia o período do governo militar ainda é pouco compreendido e sua real dimensão escapa da compreensão de boa parcela da sociedade, sobretudo da mais jovem. Centenas de obras sobre o tema preenchem as prateleiras das livrarias, mas poucas conseguem retratar o período em questão com tamanha maestria do que as obras do jornalista Elio Gaspari.
No ano de 1984, o jornalista Elio Gaspari se propôs a tarefa de escrever um ensaio, de não mais que cem paginas, sobre a relação entre Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva e a posterior ascensão de ambos ao poder no ano de 1974 - como presidente da República e Chefe da Casa Civil respectivamente. Contando com uma bolsa de estudos de três meses no Center for International Scholars e ao acesso a Biblioteca do Congresso Americano em Washington, Gaspari esperava concluir rapidamente seu trabalho, cujo titulo seria “Geisel e Golbery, o sacerdote e o feiticeiro”. Cerca de trinta paginas já haviam sido redigidas, e seu objetivo era explicar porque Geisel e Golbery desmantelaram a estrutura da ditadura militar, entre os anos de 1974 e 1979, se ambos haviam tido ativa participação na sua formação entre 1964 e 1967. Mergulhado em documentos oficiais e relatos de civis e militares, Gapari levaria dezoito anos para transformar sua proposta inicial em uma magistral serie de quatro livros que cobrem um dos períodos mais negros e lamentáveis da história de nosso país: os chamados “Anos de Chumbo”.
No primeiro volume, “A ditadura envergonhada”, o autor revela os bastidores da luta pelo poder que levaram ao golpe militar de março de 1964 até a criação do famigerado Ato Institucional número 5. O texto simples e direto parece dialogar com o leitor expondo o quadro caótico dos momentos finais do governo de Joáo Goular, que com seu anuncio de “reformas de base” havia apavorado a ala conservadora da sociedade fazendo deslocar uma serie de atitudes, boa parte delas de improviso, e cujas consequências seriam sentidas pelos próximos 21 anos. A participação do governo americano por traz do golpe militar, motivado pela crença de que “Jango” seria uma espécie de fantoche nas mãos dos comunistas, aparece logo na primeira parte da obra atraves de transcrições de conversas confidenciais, gravadas no salão oval da Casa Branca, entre o então presidente americano J. F. Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon. Essa intromissão norte americana nos assuntos relacionados à America latina – um exemplo claro de que no mundo globalizado os assuntos relativos às políticas domesticas e externas se inter-relacionam de forma intrínseca – no contexto de um mundo em plena guerra fria, onde o maniqueísmo típico do século XX, reafirmado pela polarização entre o leste socialista e o oeste capitalista, só aumentam a tensão narrativa das primeiras paginas.
Ao longo das mais de 400 paginas, cujo texto em alguns momentos pode parecer um pouco confuso, vemos os bastidores da operação “Brother Sam”, a fuga de “Jango”, a criação da SNI (Serviço Nacional de Informações), a decretação dos primeiros atos institucionais, a repressão aos núcleos estudantis e o inicio das praticas de tortura. “Agora vamos dar a vocês uma demonstração do que se faz clandestinamente no país”, teria dito um tenente de 27 anos a um grupo de estudantes pouco antes de serem torturados. Lentamente vemos o clima de otimismo da década de 50 desmoronar nas incertezas da década de 60. O governo começara a mostrar suas garras e poucos podiam imaginar que o pesadelo da repressão estava apenas começando.
POR TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Coleção: AS ILUSOES ARMADAS
Autor: GASPARI, ELIO
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
Número de páginas: 424

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