sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

JOANA D’ARC - UMA BIOGRAFIA


No ano de 1328 o rei da França Carlos IV, filho de Felipe IV, faleceu. Sua irmã Isabel assumiria o trono, mas Felipe de Valois, sobrinho de Felipe IV, reivindicou o trono para si através da Lei Salíca, que impedia que o trono fosse assumido pela linhagem feminina. Isabel, diante da impossibilidade de subir ao trono, nomeou seu filho, Eduado III – rei da Inglaterra – como sucessor do trono da França.
As cortes decidiram a favor de Felipe de Valois que assumiu o trono sob o titulo de Felipe VI. Eduardo III, no entanto, estava determinado a ser soberano da Inglaterra e da França. Em 1337 ele enviou suas tropas para combater Felipe VI dando inicio a chamada Guerra dos Cem Anos (1337-1453), o maior conflito europeu do período feudal.
Ao longo dos 116 anos de conflito nenhuma figura histórica se destacou tanto quanto a francesa Joana D’arc, personalidade historica que Donald Spoto resolveu retratar em sua incrível obra “Joana D’arc uma biografia”. Existem poucas informações sobre os primeiros anos de vida da heroína francesa, mas Spoto promove um resgate bem fiel e objetivo sobre não apenas a sua historia mas também de sua família. É um trabalho muito competente diante de tão poucas e contraditórias informações.
Não se sabe ao certo, por exemplo, se ela nasceu em 1411 ou 1412 e a própria data de seu nascimento – 6 de janeiro - foi estabelecida por razoes puramente simbólicas. O que se sabe é que Joana era filha de um respeitado proprietário de terras do vilarejo de Domrémy. A família vivia em uma residência confortável para o período e atualmente teria o status de classe media. Aparentemente Joana não foi alfabetizada. Era uma simples camponesa de hábitos religiosos sem nada que a destaca-se dos demais moradores de Domrémy.
A narrativa de Donald Spoto está muito longe de ser cansativa ou tendenciosa. Em alguns momentos de fato fica a sensação de ele busca construir a imagem de uma heroína, mas ele naturalmente se corrige ao analisar os feitos de Joana de forma muito objetiva deixando que o leitor os interprete da forma que achara mais adequada. O problema dessa abordagem é que o texto corre o risco de parecer vago, mas diante de tantas lacunas nos registros históricos o autor se saiu muito bem ao deixar de lado a pretensão de construir uma biografia definitiva.
Um ponto abordado a exaustão no texto é sobre as misteriosas vozes que Joana alegava ouvir. Segundo o depoimento da própria Joana, durante o seu julgamento, foi durante um dia do verão de 1424, por volta do meio dia, que ela ouviu pela primeira vez uma dessas vozes enquanto caminhava pelo jardim de sua casa. As vozes se seguiram de luz muito forte em meio à vegetação. Spoto confronta essa alegação a partir de dois pontos de vista: dos que acreditam se tratar de um fenômeno sobrenatural e dos que os que tentam explicá-los através da ciência.
O comportamento de Joana por muito tempo foi interpretado como uma manifestação de sua natureza supostamente lesbica. Esse absurdo é desconstruído aqui através da exposição de uma jovem pratica e sensata que se vestia como homem simplesmente para que fosse vista como um. Dessa forma ela se protegia de eventuais abusos sexuais, pois naquela época as únicas mulheres que acompanhavam os cavaleiros eram as prostitutas. Não é uma obra com olhar direcionado ao plano mais violento de sua historia e sim focada no elemento humano. Quem espera um texto com descrições violentas de batalhas pode achar a narrativa de Spoto meio “água com açúcar”. A Joana mulher têm mais espaço aqui do que a Joana guerreira. As batalhas aparecem mais como elementos de preenchimento sem muita relevância para o propósito do texto.
O único momento em que a narrativa se aventura numa linguagem mais belicista e durante a descrição da batalha de Orléans na qual Joana foi atingida por uma flecha que atravessou sua armadura entre o ombro e o pescoço. A segunda metade da obra se dedica inteiramente as descrições do julgamento de Joana, com muitos trechos dos registros feitos na ocasião. É talvez o momento que mais aproxima o leitor da verdadeira historia dessa icônica figura da historia da França que por muito tempo foi cercada de mitos e lendas.
A obra de Spoto é uma biografia excelente e reveladora que se inicia com a história de uma simples família de camponeses do vilarejo de Domrémy e termina com uma jovem, de 19 anos, acusada de heresia pela igreja católica, ardendo em meio às chamas na trágica manhã de 30 de maio de 1431, uma quarta-feira.
AUTOR
TIAGO R. CARVALHO
JOANA D'ARC - UMA BIOGRAFIA
Autor: SPOTO, DONALD
Editora: PLANETA DO BRASIL
Nº de Páginas: 304

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O SOL DO BRASIL


Em 26 de março de 1816, Nicolas Antoine Taunay, filho do pintor e químico Pierre-Antoine Henry Taunay, desembarcou no Brasil junto com os artistas da chamada “Missão Artística Francesa” – liderada por Joachin Lebreton e patrocinada pelo rei Dom João VI.
Nascido em Paris no dia 10 de fevereiro de 1755, Taunay se interessou por arte já na infância. Sua forte miopia, que o levou a usar óculos com lentes excessivamente grossas por toda a vida, não o impediu de se tornar um dos mais talentosos paisagistas históricos de seu tempo. A obra “O sol do Brasil”, da autora Lilia Schwarcz, narra a trajetória desse pouco conhecido artista francês cujo talento é inquestionável.
Lilia Moritz Schwarcz é uma autora que possui uma notável elegância narrativa. Seus textos são de um vocabulário muito rico e rebuscado, mas não ao ponto de ser verborrágico. Em alguns momentos ela parece falar consigo mesma deixando de lado um pouco da sempre perene postura opinativa dos historiadores. Uma coisa que irrita profundamente os leitores de textos históricos e quando fica a impressão de que o autor estar entrando em um assunto do qual ele não domina completamente, pois fica superficial demais e muito mais adequado a uma revista que a um livro. Mas não é este o caso de Lilia Schwarcz.
Apesar de ser uma obra que vende um conteúdo voltado para a história do Brasil, e com um titulo de relativo apelo comercial, não se trata de um texto na mesma linha, por exemplo, que as obras de Laurentino Gomes. O texto não tem o foco concentrado nas aventuras dos artistas franceses na corte de Dom João. O foco aqui é a arte! Existem muitas passagens com analises criteriosas das obras, dos estilos e das tendências estéticas do período.
O leitor de “O sol do Brasil” deve, no mínimo, se interessar por arte. Cuidado com as falsas expectativas criadas pelo subtítulo, pois temos aqui o caso de uma obra onde a arte é colocada em um nível superior ao artista. O projeto gráfico da obra é primoroso. A qualidade do material é impressionante. Todas as paginas são impressas em papel Polen Soft com uma gramatura mais acentuada, a fonte do texto é boa embora o espaçamento possa desagradar alguns leitores. Muitas imagens belíssimas em preto e branco e também em cores.
A narrativa é bem cronológica começando com uma caracterização do país a partir dos boatos contados por portugueses, alemães e franceses que por aqui se aventuraram. A autora deixa bem clara, por exemplo, a influencia que a obra do alemão Hans Staden teve para o imaginário europeu. Esse é um ponto onde o texto mais incorpora a descrição histórica, mas o tom narrativo é mais contemplativo que instrutivo. O texto presume um certo conhecimento do leitor e embora seja bastante descritivo, não é o do tipo onde tudo é explicado. Na sequência a autora analisa o movimento neoclássico francês dando destaque para o seu maior ícone, o pintor Jacques Louis David, avaliando o papel da arte como ferramenta política no período napoleônico. Somente a partir daí é que o foco volta a se deslocar para o Brasil.
Lilia Schwarcz tem tudo àquilo que sua função exige: conhecimento, conteúdo e clareza conceitual, no entanto, esse excesso de gabarito é o que trás alguns problemas para o texto. Falta impulso narrativo, falta carisma na linguagem que é excessivamente formal. A narrativa é muito intermitente com muitos retrocessos que impedem que a obra seja lida com um fôlego único. Se você é um daqueles leitores que tem dificuldades de retomar um raciocínio interrompido pela intermitência descritiva esse livro certamente irá desagradá-lo.
Apesar dessa ultima ressalva a obra é de muita qualidade, muito conteúdo e muito interessante. Vale à pena dedicar tempo a este tipo de texto que foge um pouco dos padrões de preferência nacional. Se você gosta de arte certamente vai gostar de “O sol do Brasil”. Boa leitura!
AUTOR
TIAGO R. CARVALHO
Título original: O SOL DO BRASIL
Capa: Hélio de Almeida
Páginas: 464
Selo: Companhia das Letras

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O ÚLTIMO DIA DO MUNDO: 1 DE NOVEMBRO DE 1755


“Que jogo de azar é a vida humana! (...) Isso deveria ensinar os homens a não perseguir outros homens; porque enquanto alguns santarrões embusteiros queimam alguns fanáticos, a terra se abre e engole a todos igualmente.”
- Voltaire (24 de novembro de 1755).
No dia 1 de novembro de 1755, dia de todos os santos, a ensolarada Lisboa foi sacudida por três tremores de terra. O primeiro fez os sinos das igrejas tocarem, despedaçou vitrais e colunas de mármore. Quarteirões inteiros desabaram soterrando centenas de pessoas: Era o inicio do maior desastre natural do século XVIII.
Por volta das nove e meia da manhã veio o segundo tremor, ainda mais forte que o primeiro. Este lançou ao chão até mesmo as construções mais robustas. O terceiro tremor ocorreria poucos minutos depois. Lisboa já era uma pilha de escombros nesse momento e começava a circular a ideia de um possível castigo divino.
Um enorme incêndio, provocado pelas centenas de velas acessas naquele tradicional dia de orações, engoliu as ruínas da cidade. A brisa marinha ajudou a amenizar a propagação do fogo, mas o que parecia um sopro divino se converteu numa cruel realidade. Um forte vento começou a soprar de forma repentina da direção do mar. Uma serie de ondas enormes atingiram a parte baixa de Lisboa por volta das 11h da manha. Em apenas cinco minutos essas ondas destruíram tudo que encontraram pelo caminho. Lisboa estava completamente arrasada e dos seus escombros surgiria um intenso debate sobre Deus, o homem e a ciência.
“O último dia do mundo. Fúria, ruína e razão no grande terremoto de Lisboa de 1755”, do autor Nicholas Shrady, é um texto perturbador sobre um dos maiores desastres da historia lusitana. É um daqueles típicos livros onde você não consegue parar de ler simplesmente porque a informação que vem depois é ainda mais impressionante daquele que você acabou de ler. Eu certamente definiria sua narrativa como ardilosa e oscilante, pois em um primeiro momento temos a impressão de que o autor esta tentando segurar o leitor através do puro sensacionalismo e logo em seguido ele joga o texto em um rumo completamente diferente empregando um tom narrativo mais seco e objetivo.
Essa mudança brusca pode parecer um ponto negativo, mas não é o que acontece em “O ultimo dia do mundo”. A descrição do terremoto em si se resume a algumas poucas paginas logo no primeiro capitulo. O autor não emprega longas digressões até chegar ao clímax da obra, pelo contrario, ela joga toda a crueza daqueles momentos terríveis logo de cara isto porque o texto de Shrady trabalha sobre os desdobramentos do evento e não sobre o evento em si. O autor se beneficia através desse foco narrativo de uma quantidade infinitamente maior de material, por meio do qual ele faz questão de deixar clara a sua postura anticatolica.
Não se trata de um simples ataque a igreja, mas da construção de uma atmosfera de medo criada pela inquisição em uma época onde o cientificismo já havia se consolidado por meio da física de Newton e do deísmo da ilustração.
Logo no segundo capitulo vemos a primeira grande mudança narrativa quando o fenômeno natural cede espaço para o fenômeno humano: Sebastião Jose de Carvalho e Melo, o lendário Marques de Pombal. O autor reconstrói a imagem desse ícone lusitano que modernizou o ensino, a administração pública e travou um longo conflito com a igreja. Em nenhum momento busca-se construir uma personalidade de herói nacional. O marques é descrito de forma bidimensional como um homem que diante do caos provocado pelo terremoto ordenou a colocação de forcas para punir os acusados de saquear lojas e armazéns e que ao mesmo tempo condenava a crueldade da igreja católica.
O meio da obra é basicamente uma descrição dos fatos históricos mais relevantes da nação portuguesa. O Brasil aparece como uma importante fonte de recursos, principalmente ouro, o que permitiu a coroa portuguesa governar sem ter que recorrer as Cortes para a aprovação de verbas.
A atmosfera filosófica dominada pelo otimismo do período desmorona completamente diante das criticas pertinentes de Voltaire tendo como base o trágico terremoto. Esse é um dos pontos mais abordados pelo autor, e também é um dos momentos mais interessantes e polêmicos do texto. A obra “Candido e Otimismo” surge como uma importante base critica do filosofo francês que enxergava a realidade ao invés de projetar nela seus desejos.
Na última parte o texto retoma a narrativa a partir do Marques de Pombal e mostra suas tentativas de eliminar o senso comum puramente misticista que envolvia o terremoto. Falhas geológicas e placas tectônicas só seriam compreendidas mais de um século depois, mesmo assim Pombal conseguiu estabelecer, através dos principais luminares de sua época e também de séculos anteriores – como Robert Hooker que havia demonstrado a relação de elasticidade em objetos sólidos – uma base cientifica bastante satisfatória que esclarecesse o modo como os terremotos aconteciam. Foi um golpe de mestre, pois ele transformou em vitimas do acaso aqueles que a igreja definia como pecadores castigados.
“O último dia do mundo” é um texto denso no seu conteúdo, mas leve na sua narrativa. Agradável, intrigante, revelador e profundamente perturbador. Vale cada minuto de leitura!
AUTOR
TIAGO R.CARVALHO
Título: O Último Dia do Mundo
Autor: Nicholas Shrady
Editora: Objetiva
Especificações: 288 páginas

domingo, 12 de fevereiro de 2017


“A morte é um problema dos vivos.”.
- Norbert Elias
“Alemanha, 1945” do autor Richard Bessel trás a tona, de forma muito competente, os dramas políticos e humanos de uma Alemanha arrasada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A pergunta que se faz é se esta obra é relevante para quem já possuiu um largo conhecimento sobre a Segunda Guerra Mundial? A resposta é sim!
Não se trata apenas mais uma obra sobre o tema e sim de um texto de aspecto singular quanto ao que ele se propõe fazer. Existem muitas informações interessantes aqui, a abordagem do autor é bem objetiva, clara sem recorrer a uma dramatização desnecessária ou piegas. Bessel parece compreender bem que o leitor de seu texto já possui uma familiaridade com o terrível contexto do conflito, ou seja, é um leitor que já absorveu a essência desumana do nazismo e também os desdobramentos brutais que o mesmo provocou.
Não esperem encontrar aqui uma abordagem sentimental e este talvez seja o grande mérito de Richard Bessel, pois ele conseguiu criar um texto onde o elemento humano é predominante porem o foco é mais político, geográfico e sociológico. Há uma oscilação constante entre as decisões tomadas em nível de governo e as conseqüências dessas decisões na vida do cidadão alemão comum. Bessel explora a individualidade apenas para mostrar o quanto o elemento humano é afetado por medidas completamente alheias a sua realidade.
O foco do texto são os meses imediatamente posteriores a rendição da Alemanha, mas a obra só entra nesse seguimento após um resumo dos últimos meses de combate, onde o pano de fundo é a defesa desesperada do território alemão. O sangrento mês de janeiro de 1945, o mais sinistro da historia da wermarcht quando 450 mil soldados alemães foram mortos, abre a seqüência de eventos narrativos que expõem o desabamento final do III reich.
O ponto forte desta obra impressionante é a abordagem do autor sobre os movimentos migratórios ocasionados pela fuga da população civil alemã das regiões onde os combates eram mais intensos. Aqui ele não se priva de absolutamente nada para compor seu quadro narrativo. Verdadeiras tragédias e desastres são apresentados sempre com o amparo de dados estatísticos. Números é algo que Richard Bessel usa e abusa em seu texto e é justamente esse recurso que expõe ao leitor a magnitude do conflito.
O campo de batalha urbano é explorado de forma tridimensional: a perda de referencia geográfica provocada pela destruição das ruas e construções, as conseqüências geradas pelo desaparecimento do Estado policial nazista, a forma como esses eventos foram assimilados por pessoas de diferentes faixas de idade, a desintegração da unidade familiar diante da realidade apocalíptica do pós guerra que naturalmente legitimava o abando da conduta moral e a satisfação imediata das necessidades mais primitivas.
Na segunda parte do texto o foco é a administração das potencias aliadas em suas respectivas zonas de ocupação, é e nesse ponto que “Alemanha 1945” emerge como uma obra ímpar e que talvez se compare, em mérito, apenas ao impressionante “Pós Guerra” de Tony Judt. Os dados referentes aos números de prisões efetuadas nas zonas de ocupação americana, soviética, francesa e britânica vão surpreender aqueles mais acostumados a aceitar a idéia de que a zona soviética foi a mais brutal em termos humanos.
O que mais impressiona, no entanto, são os dilemas enfrentados pelos aliados para alimentar a população alemã. A escassez de alimentos provocada, por exemplo, pela migração das zonas rurais é tão bem narrada pelo autor que causa um impacto muito mais significativo no leitor do que os combates propriamente ditos. Isso deu vazão a tendência alemã de se definirem, nos anos do pós guerra, como vitimas ignorando o sofrimento que o nazismo levou a tantos países ao longo do regime de Adolf Hitler. “Alemanha 1945” é uma obra de leitura obrigatória, atual e nada genérica. Vale muito à pena!
AUTOR
TIAGO R. CARVALHO
Título original: GERMANY 1945
Tradução: Berilo Vargas
Páginas: 504
Peso: 0.763 kg
Acabamento: Brochura
Selo: Companhia das Letras
Documentário que serve como complemento da obra:

A CAMAREIRA


“Sabe o que há de belo na faxina? (...) E que a sujeira sempre volta.”
O afeto é como o mercado publicitário: sua função é criar novas necessidades! O triunfo do individuo sobre a sociedade é a meta de muitos anônimos que atualmente compõem o mosaico urbano. Indivíduos que buscam uma forma de existência pouco comum e que se aventuram num mergulho constante das possibilidades. Nem sempre aquilo que está disposto nas prateleiras da sociedade satisfaz as minhas necessidades ou possui um valor acessível aos meus interesses. Diante da escassez por que não explorar novos meios de satisfação? O valor nem sempre se reveste da utilidade do produto, pois na maioria dos casos é a ausência de utilidade que confere valor as coisas.
Linda Maria Zapatek, ou simplesmente Lynn, nasceu em 1975, possui cabelos castanhos, olhos verdes, um metro e sessenta e cinco de altura. Desempregada ela mora de aluguel – que é pago por sua mãe - é que gosta de assistir “Tempos moderno” durante as noites: eis a protagonista da obra “A Camareira”, do autor alemão Markus Orths.
Logo de inicio somos expostos ao fluxo de pensamentos de uma personagem que confabula sobre os aspectos físicos de um edifício. Vidros enormes cobrem a fachada do imponente prédio sem que a privacidade da rotina em seu interior pudesse ser ocultada. “por que não paredes, pedra concreto?” - ela se pergunta.
Não se trata de uma narrativa prolixa e muito menos de um mero recurso de preenchimento da estética literária. É por meio dessa explanação descritiva do espaço geográfico que o autor constrói os elementos visuais que devem orientar a leitura através do seu contexto. Nessa obra em particular os detalhes dos cenários descritos pela própria personagem são relevantes porque são esses detalhes que estabelecem uma forma interessante de dialogo. Pessoalmente gosto muito desse tipo de introdução, na maioria dos casos ela imprime um ritmo de leitura agradável e cria uma valorização do individuo por meio do seu papel, uma espécie de nicho social.
Seu olhar atento discorre sobre as peculiaridades do que vê nas ruas: “Como seria se ninguém me notasse? Se as pessoas não vissem ao redor de mim, vissem através de mim. Como se eu não existisse (...). Cada dia é uma abreviação do tempo, cada passo, uma abreviação do caminho.” Para o leitor esse primeiro momento representa exatamente isto: cada pensamento de Lynn representa uma abreviação da extensão de sua personalidade. Ela finalmente consegue um emprego como arrumadeira de quarto de hotel onde se diverte fazendo deduções lógicas:
“Uma escova de dentes esquecida? O hospede terá de comprar uma nova. Um desodorante barato? Ele não dá valor à higiene do corpo. Fios de barba na pia: sinal de desatenção. Absorvente na nécessaire? Um cheiro de cólicas no ar. Um relógio masculino sobre o criado-mudo? O homem terá de perguntar as horas durante a viajem.”
Certo dia, enquanto divagava sobre o hospede do quarto 303, Lynn é surpreendida por seu retorno e imediatamente se esconde sob a cama. Nesse momento ele descobre uma nova forma de prazer: observar a privacidade alheia – a diversão perfeita para o desajustado social. Naqueles momentos de intimidade Lynn assistia a tudo, numa forma de vida cada vez mais distante do pueril. Era seu conceito próprio de amadurecimento, de crescimento, mas esse método não se pareava com o conceito de “maturidade” de seu tempo. Bisbilhotar a vida alheia era algo reprovável em uma mulher adulta, postura ridícula em termos de comportamento. Essa é uma situação no qual o mais absurdo dos comportamentos perde aquilo que faz dele um ato estúpido, pois o que permanece é apenas o instinto primitivo de saciar a curiosidade sobre uma realidade que não nos pertence.
Aquilo que ocorre entre quatro paredes, longe do crivo moralista e hipócrita da sociedade possui um valor diferenciado porque circula por diferentes meios e se expressa de diferentes formas. O desejo de Lynn em permanecer anônima, como expectadora, debaixo da cama, acompanha a idéia de identificação através da posse: por que devo permitir me identificar como detentora de algo cujo segredo é o que lhe atribui valor? O segredo é o que atribui valor a privacidade.
Lynn parecia sentir que a relação entre duas pessoas, sejam elas do mesmo sexo ou não, se baseava nas semelhanças que estas partilhavam aos olhos da sociedade, mas a força que mantinha aquela forma ilógica de coesão afetiva se expressava nas diferenças e estas só se manifestavam na privacidade aparente de quatro paredes. O concreto, neste caso, não apenas limitava o alcance do olhar, ele impedia que o poder do desejo físico ganha-se espaço junto a uma consciência moral disseminada onde o afeto figurava como a verdadeira força das relações humanas.
O que mais me chamou a atenção na obra “A camareira” é que a leitura de seu texto, e sua digestão posterior, permitem resgatar um tema bastante polemico que é a questão da natureza contraditória dos valores morais. A privacidade sempre foi objeto de fascinação dos seres humanos. O que as pessoas fazem entre quatro paredes ou mais precisamente o seu padrão de conduta sexual, sempre serviu de base para um julgamento moral, ainda que esse julgamento se expresse de forma velada.
Se nos propusermos trazer esse tipo de debate para o contexto social do momento, marcado por movimentos de reafirmação por direitos civis, como por exemplo, o direito de união civil de pessoas do mesmo sexo, veremos contradições nos argumentos que se opõem a normatização jurídica de tais direitos.Em primeiro lugar pessoas contrarias a união de casais do mesmo sexo invocam aspectos morais e religiosos como argumentos. Esses mesmos “defensores da moralidade” abraçam o direito da privacidade e alegam não se interessar pela vida particular de cada um. Nada mais contraditório!
A diferença entre um relacionamento hetero e um relacionamento homo se expressa em privado, na intimidade impenetrável de cada um. Como então podem alegar serem contrários a união de pessoas do mesmo sexo e ao mesmo tempo se dizem avessos a qualquer tipo de curiosidade sobre a vida particular de cada um? O suposto “pecado” ocorre entre quatro paredes, longe dos olhos e acessível apenas a imaginação. Como negar que nesse caso é a curiosidade que determina a conduta?
Porque a sociedade é tão permeável a critérios de valor moral? O corpo social é como uma arvore: à medida que cresce se ramifica e se torna mais complexo. A criação de condutas valorativas nesse contexto funciona como um elemento que unifica as pessoas em torno de um valor comum. E nessa associação coletiva - em que cada um aceita destruir a sua individualidade - que nascem os valores morais. É interessante como isso demonstra que mesmo adultos guardamos uma parcela daquilo que já fomos um dia como adolescentes para os quais os valores do grupo têm sempre uma prerrogativa mais elevada em relação aos valores individuais.
O texto de “A camareira” é a típica narrativa em que o personagem, ou os personagens, são projeções do meio em que eles se inserem. O ambiente urbano é muito significativo aqui e é através dele que os personagens dialogam com o leitor. O espaço geográfico funciona como conectivo no qual oscila realidade e ficção. É este recurso que facilita que o leitor se identifique e crie simpatia pela protagonista: uma mulher com uma aparência comum, uma historia comum, mas com hábitos e comportamentos incomuns. Uma camareira que encontrou diversão na sujeira banal da privacidade é algo perfeitamente lógico e nada incongruente. É nas entrelinhas do texto que podemos encontra seu objeto de reflexão: a questão da busca por satisfação e sua suposta incompatibilidade com a moral da sociedade civilizada.
A definição de prazer dada pela psicanálise freudiana é muito abrangente é não se resume apenas a atividade sexual. O prazer pode decorrer de uma leitura, de um passeio ou até mesmo de uma simples conversa. Por que então se condicionou a satisfação ao ato sexual? O filosofo Herbert Marcuse, em sua obra “Eros e Civilização”, concluiu que o método de produção da sociedade moderna, sempre havida por aprimoramentos e incremento produtivo, havia reprimido a busca pela satisfação individual. Para o funcionário dedicado e trabalhador era impossível encontrar prazer nos afazeres diários, pois estes eram cansativos, desgastantes, repetitivos e em muitos casos prejudiciais a saúde. O trabalhador reprimia suas vontades para assumir o papel de responsável e de chefe de família.
Reprimir as próprias necessidades é algo que não dura por muito tempo. O liberalismo sexual das décadas de 60 e 70 assinalou os limites impostos pela repressão da nova ordem mundial. Uma onda de hedonismo tomou conta da sociedade. A imagem do trabalhador disciplinado começava a cair por terra ameaçando o padrão produtivo, mas a reação capitalista foi imediata.
Imediatamente adotou-se o órgão genital, e tudo aquilo que fizesse referencia a ele, como estratégia de combate ao descompromisso do pensamento hedonista. Revista com mulheres nuas, filmes pornográficos, roupas mais provocantes e cartazes de roupas intimas foram criados. A ideia era de que o mercado oferecesse produtos que saciassem a busca por prazer individual afastando de vez o fantasma da indolência. A partir daí o prazer tornou-se um conceito atrelado a duas coisas: consumo e sexo.
Lynn conseguiu encontrar uma forma de romper essa repressão encontrando prazer dentro e fora dos limites da sexualidade. Ironicamente o liberalismo sexual aprisionou a sociedade ao definir as “rotas do prazer”. A obra de Markus Orths nos leva a refletir: a sociedade é uma mistura de estupidez e ousadia, a dificuldade é definir quem são os ousados e quem são os estúpidos. Boa leitura!
AUTOR
TIAGO R. CARVALHO
Título: A CAMAREIRA
Título Original: DAS ZIMMERMÄDCHEN
Páginas: 136
Editora:LePM
OBS: As duas obras de arte do texto são do pintor norte americano Tom Wesselmann, um dos maiores representantes da "Arte Pop", e cujas obras criticavam a transformação do erotismo em produto de consumo.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

MDNA


A musica rompeu a hegemonia do cinema como à forma de arte mais apreciada em todo e mundo sublinhando os limites deste quanto ao seu papel na emergente cultura de identidade urbana. Estamos em plena década de 80 dominada pelos agitos da disco music. Nas mais de mil danceterias espalhadas pelo centro da velha e falida metrópole de Nova Iorque as noites eram embaladas por musicas como “That´s the way” de KC e The Sunshine Band e “Stayin Alive” do Bee Gees.
Jeans desbotados e rasgados nos joelhos, jaquetas de couro, cabelos rebeldes domados por lenços coloridos e combinações destoantes era o que se via de mais comum. Pulseiras e correntes simbolizavam a agressividade juvenil acentuando o rompimento espontâneo para com as tradições familiares das décadas anteriores.
A noite era o berço da diversão, dos encontros, da troca de sensações, hora de exorcizar os demônios nas pistas de dança e saturar o espírito com aquilo que a vida tinha a oferecer aos jovens amantes da musica. Era nas ruas que o aspecto mais relevante da revolução cultural podia ser visualizado como algo puramente simbólico e de certa forma alegórico: a valorização da identidade individual em detrimento dos valores sociais coletivos.
Existem aqueles que enxergam no período uma evidente manifestação de fragmentação social, no entanto os termos aqui analisados, quando planamente compreendidos, demonstram que a sociedade se tornava mais organizada à medida que se diversificava. Essa diversificação ocorria sob uma forte tensão provocada e alimentada pela busca de elementos que sinalizassem as incongruências culturais de cada tribo urbana. Era importante delimitar o tipo de comportamento a partir das roupas. Estamos numa década onde você é o que você veste! Foi nesse meio que o furacão Madonna conquistou seu espaço sinalizando em seu corpo as marcas de seu tempo.
Who s that Girl? Quem era aquela garota que na adolescência não exalava carisma suficiente para permitir que se projetasse sobre si a imagem de futura super star? Quem era aquela garota magrela e baixinha que entre os exaustivos ensaios das aulas de dança tentava ganhar a vida como garçonete ou posando para fotos nuas como modelo de artistas plásticos? Seu passado comum tão pouco oferece uma explicação para o seu sucesso. Ela teve uma infância e uma adolescência sem eventos significativos, traumáticos sem duvida, mas nada que a coloque a margem de boa parte dos seres humanos.
Durante as noites Madonna se divertia dançando em boates gays – universo pelo qual já nutria fascinação. Nessa atmosfera receptiva as novas formas de “espontaneidade representativa” ela explorou sua bissexualidade, jogou fora a cartilha de idéias pré-fabricadas pelos costumes, destilou o naturalismo que existe por trás da auto-satisfação, reafirmou conceitos pouco ortodoxos, buscou a todo custo sua autopromoção sem se importar com valores morais. Cometeu erros e exageros, mas no fim acabou se aventurando pelas vias do sucesso.
Filha de imigrantes italianos e nascida em um meio impregnado pela força dogmática do catolicismo, Madonna havia perdido a mãe muito cedo. A experiência da perda moldou em sua personalidade uma aversão a fraqueza e fez com que encontra-se na dança uma perfeita forma de expressão para sua força. Aprendeu a esconder sua fragilidade por trás da imagem de mulher forte e dominadora, algo que lhe permitiu desfrutar de uma forma de independência que pode ser descrita como um fragmento que se desprende do conceito de liberdade. Passou a valorizar o estado de alerta constante e dizia que a tranqüilidade de espírito era uma “pequena morte”. Possuía um forte instinto de independência através do qual e deu forma a sua própria escala de valores e se orientou por seus próprios caminhos.
Madonna havia se preparado para perseguir seus desejos só não havia se preparado para pagar o preço. O que sua intempestividade juvenil não esperava encontrar em seu caminho era uma forma particular e brutal de violência contra seu sexo: certo dia ela encontrou as portas do local onde fazia suas aulas de dança fechadas e acabou sendo arrastada para o terraço de um dos prédios e violentada por um homem que poucos minutos antes havia lhe oferecido ajuda. O episodio sinaliza uma fase de transição em sua história. Aos poucos a dança perdeu seu encanto e o caminho para a afirmação no meio musical começou a se mostrar mais atraente.
Em “Madonna 50 anos” a autora Lucy O’Brien reconstrói os passos de uma das maiores estrelas da musica internacional. A garota ousada que chegou a Nova Iorque sozinha aos 19 anos com o sonho de se tornar bailarina foi aos poucos se apaixonando pelos clubes noturnos undergrounds e pelo estilo punk. “Ela é uma mulher de carne e osso, mas sua identidade mutante fez dela um quebra cabeças.” - escreveu Lucy O’Brien cujo mérito como escritora se deve a sua forma de abordagem: analisar a figura humana a partir de sua obra.
Segundo a autora, Madonna só se revela com sua configuração original durante seu trabalho, pois seria o único momento onde a hiper-conciência de sua própria imagem estaria ausente e seu pensamento estaria focado para fora dos limites dela mesma. Talvez seja esse o motivo que ela tenha optado por contar a historia do fenômeno pop de forma cronológica tendo suas musicas como marcações da passagem de tempo.
Em primeiro lugar e preciso definir que Lucy O’Brien é uma admiradora de Madonna, logo é natural que o texto de sua obra coloque em evidencia a figura da artista e defina suas musicas como um produto da assimilação de sua vida particular com as imperiosas determinações da fama. Nessa obra a estrela pop esta em maior destaque que a mulher por trás dela. O mérito desse tipo de foco e sua tendência natural de deixar de lado os boatos que sempre adornam figuras famosas e se concentrar nos fatos.
Madonna alcançou o sucesso desconstruindo idéias e articulando sua musica por meio dos seus sentimentos. Talvez o seu mais significativo salto de maturidade tenha ocorrido quando ela tinha apenas 15 anos. A vida como líder de torcida e a popularidade que vinha no rastro da “função” não mais saciavam suas ambições. O estilo adolescente de viver a margem do mundo adulto foi deixado para trás, e junto com seu interesse pela arte e pelo bale surgiu a fascinação pela dança. Christopher Flynn foi uma figura importante nessa fase de sua vida.
Chega a ser uma tarefa complexa definir até que ponto determinada musica ou álbum foi fruto da influência das tendências musicais do momento ou se foi algo puramente expressivo. Fica bastante evidente que seu trabalho é um misto de espontaneidade e planejamento. Definir o grau de influência entre um e outro é talvez a questão que a torna tão interessante como artista. Encarar o “fenômeno Madonna” como uma conjunção originaria de aspectos binários é de determinada forma algo não apenas irrelevante como também redundante afinal de contas existe algo verdadeiramente original no campo da arte que não possua certa dose de espontaneidade? Madonna sempre se mostrou tão espontânea que parece errado querer imprimir grande significado a sua obra.
Devo confessar que o texto de O’Brien me cativou logo nas primeiras paginas. A narrativa ágil da infância de Madonna logo cede espaço para o ponto mais interessante de sua historia: seus anos difíceis na falida e caótica Nova York dos anos 80. Para qualquer um que conheça a história de Madonna fica claro que a década de 80 foram seus anos gloriosos, embora tenha nesse período disputado seu espaço com outros grandes astros do pop.
A obra é não apenas uma biografia da artista, mas também de suas musicas. Um trecho interessante explica como Like a virgin se tornou um grande sucesso:
“Se você ouvir a bateria de Like a virgin vai perceber que é gorda, larga e espaçosa. Ela preenche o som da canção. Se tivesse sido feito diferente, a musica teria perdido autoridade. Sabíamos como o som mexeria com o publico de maneira subliminar – E muito do que nos atrai na musica está na persistência com que ela se agarra ao subconsciente.”
O álbum Like a virgin foi lançado em novembro de 1984. Esse talvez tenha sido o trabalho de Madonna que mais probabilidade teve de fracassar devido à mudança no estilo em relação ao seu trabalho anterior e também por ter sido lançado em um momento onde o mercado musical era dominado por artistas como Michael Jackson – que reinava absoluto com Thriller – e Prince que com o sucesso de Purple Rain ganhava cada vez mais destaque.
O mercado musical também enfrentava crises devido à redução do numero de adolescentes. À medida que a população envelhecia e os adolescentes se tornavam adultos as vendas de singles despencavam. Aquele era sem duvida um momento difícil para a carreira de qualquer artista. O funil provocado pela concorrência e pelo mercado em crise funcionou como uma espécie de seletor de astros. Foi nesse contexto que a MTV surgiu como um dos mais significativos meios de comunicação. Madonna se apoiou nessa crescente indústria de vídeo clipes e teve o mérito de saber usar sua sensualidade e desenvoltura em proveito próprio. Ela conseguiu direcionar a critica para além de seus limites vocais – algo da qual era plenamente consciente. A dança deu a ela uma noção valiosa quanto ao ritmo e seu visual diferenciado foi um prato cheio para a indústria de videoclipes da época.
Ela possuía estilo e um visual bastante favorável a comercialização, assim como sua mais forte concorrente: a lenda pop dos anos 80 Cindy Lauper que com os sucessos “Girls Just want to have fun” – cuja letra consiste num autêntico retrato dos desejos femininos do período – “True Color” e a imbatível “Time after Time”. Talvez seja mais claro identificar Cindy Lauper como sua mais significativa concorrente pelo fato de ambas imprimirem através de sua imagem e suas musicas a mesma proposta de transgressão e repudio ao conservadorismo.
Até que ponto seu engajamento político das ultimas décadas se contrastava com a aparente esterilidade política de suas musicas nos seus primeiros anos de carreira? Se considerarmos que suas musicas possuem uma mensagem fortemente carregada pelos sentimentos femininos veremos que desde o inicio sua musica carrega um certo posicionamento político na medida que ela propõe uma nova postura - sobretudo da população feminina - ao mesmo tempo que se constrói como um ícone capaz de moldar opiniões, embora essa não fosse sua intenção.
Madonna vivia o auge da geração Yuppie deflagrada pela era do neoliberalismo de Ronald Regan. Impostos reduzidos se traduziam em menos responsabilidade social por parte do governo, ambiente perfeito para o espírito empreendedor. Não é sem motivo que a ambição se tornou característica positiva para os jovens ávidos por ascensão social. Interessante ver que Madonna não confrontou os valores sociais desse período, pelo contrario até se identificou com eles... até compor Material Girl.
O sucesso de Material Girl fez com que a musica se consagrasse como um hino pop contrario a personalidade materialista, porem Dress you Up coloca em relevo a mesma questão de forma muito mais competente. A letra faz uma comparação entre as sensações experimentadas por aquilo que o dinheiro podia comprar, no caso roupas luxuosas, e aquilo que só se podia ser sentido através do afeto. As fortes batidas isoladas na introdução e que permanecem praticamente inalteradas preenchendo a canção conferem a esta um ritmo que acaba reforçando o vigor da letra.
Criticada por sua postura nada comum, contestada por suas opiniões, admirada por sua obra, imitada em seu estilo, odiada e de certa forma temida por sua ousadia. Modonna é talvez a celebridade que mais acumula conceitos. Ela cumpriu bem seu papel como representante de uma forma contemporânea de arte cuja construção se funde num misto de linguagem corporal e arranjo musical. Ela escapa a compreensão porque se reinventou de uma forma que sua postura e sua opinião não fizessem paralelo nos costumes. Nunca se posicionou a margem de seu mundo, sempre buscou o ângulo através do qual pudesse impactá-lo.
Sua natureza fortemente criativa e sinalizada por um de seus aspectos mais característicos: a tendência de se reinventar constantemente. O método caiu perfeitamente ao “estilo Madonna”, pois à medida que buscava uma nova imagem para si própria ela alimentava a figura da mulher forte e dominadora – algo que fazia questão de reafirmar constantemente – que não acompanhava as tendências, mas que as criava. “Eu não defendo um estilo de vida eu descrevo um”- disse ela durante uma entrevista coletiva.
Madonna que sempre soube usar o poder da linguagem corporal tinha consciência do papel do olhar como parte da expressão dos sentimentos. “True Blue” – escrita por ela e dedicada ao seu marido, na época o ator Sean Pen - faz uma alusão a cor dos olhos de Pean como um espelho de seus sentimentos verdadeiros. True Blue (Azul verdadeiro) tornou-se o álbum mais vendido no mundo em 1986. Lançado no mês de junho daquele ano ele enfrentou a concorrência direta do álbum True Color (Cores Verdadeiras) de Cindy Lauper, lançado apenas três meses depois.
Like a Prayer, o terceiro álbum de estúdio de Madonna, lançado por ocasião dos seus trinta anos, marca uma fase angustiante de sua vida. O álbum deve seu sucesso à forma sabia com a qual ela soube colocar seus sentimentos em paralelo ao momento econômico dramático da política neoliberal do presidente Ronald Regan. A ideia era se afastar da imagem pop vibrante de seu álbum anterior “True Blue” e mergulhar numa atmosfera angustiante sinalizada pelos cabelos castanhos e por vocais densos. Era o inicio de uma nova fase o que para Madonna não configurava um desafio uma vez que se trata de alguém acostumada a criar diferentes versões de si mesma.
“Like a Prayer” retoma a linguagem de “True Blue” sob uma perspectiva menos glamourosa e, portanto se caracteriza como uma projeção complementar do trabalho anterior. Essa perfeita transição entre duas fases marcantes de sua carreira é o que torna “Like a Prayer” o seu trabalho mais admirável e mais próximo de uma autêntica forma de arte, pois é nele que Madonna deposita a mais significativa carga emocional. Suas musicas exalam sentimentos que se constroem por meio da junção de uma sonoridade angustiante e de uma composição carregada de reflexão e confissão, tudo isso sem o toque maçante do recurso trágico. Dessa forma ela não apenas encerrava um capitulo de sua biografia como também reafirmava sua postura dominadora.
“Spanish eyes” é uma das mais marcantes faixas do álbum. Carregada de sentimentos a letra fala sobre a busca de consolo na fe como alivio para a dor produzida pela saudade. Em determinado momento da letra ela deixa claro o papel de sua musica como parâmetro de compreensão para seus sentimentos.
A extensão mais evidente de “True Blue” em “Like a Prayer” e a canção “Cherish” cuja letra foge dos temas mais densos das demais faixas do álbum. Enquanto “Cherish” configura uma projeção de “True Blue”, “Live to tell” é uma antecipação dos rumos tomados em “Like a Prayer”. Essa dupla conexão entre os trabalhos reflete a presença do produtor musical Patrick Leonard como co autor em ambos os discos.
Para quem quiser ler mais sobre a vida da cantora Madonna recomendo a leitura de "Madonna 50 anos", um livro cativante desde o seu inicio e recheado de historias sobre essa lenda do pop. Ótima leitura!!
AUTOR
TIAGO R. CARVALHO
Título: Madonna: 50 Anos
Subtítulo: A Biografia do Maior Ídolo da Música Pop
Autor: Lucy O'Brien
Editora: Nova Fronteira
Ano: 2008

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

OS ANOS 40 DE RACHEL JARDIM


A obra “Os anos 40 a ficção e o real de uma época” mostra o desenvolvimento de uma personagem a partir da reminiscência dos lugares e das pessoas que fizeram parte da sua vida. O tom narrativo é bem leve e fluido. Não existe aqui nenhum dos elementos que caracterizam negativamente a literatura brasileira para o publico mais geral como expressões regionalistas ou rebuscamento narrativo prolixo.
É um texto que remete o leitor ao seu próprio passado é e pouco provável que este não se identifique com algumas situações do enredo. A protagonista possui uma maturidade cativante que diminui com o passar do tempo. Ela é muito mais interessante nos momentos iniciais nos quais se descobre e apresenta ao leitor, de forma corajosa, alguns aspectos do seu mundo interior.
Em alguns momentos o numero excessivo de descrições de alguns personagens deixa a narrativa um pouco arrastada, mas nada que comprometa a conclusão da leitura. É uma obra surpreendentemente simples e ao mesmo tempo complexa dentro daquilo que ela se dispõe a fazer: uma mulher adulta tentando descrever de forma madura as inconstâncias da mente de uma garota vivendo em plena década de 40. Isso requer muita competência narrativa, pois em nenhum momento o autor pode deixar transparecer a sensação de uma lembrança fabricada ou romantizada.
Aqui surgem alguns problemas no enredo uma vez que o formalismo da linguagem não deixa transparecer a menina por trás dela. São poucos os momentos em que fica a sensação de que uma pré-adolescente esta falando, mas nos momentos em que a autora consegue incorporar a expressão sentimental de uma garota ela o faz de forma absurdamente competente. Ela realmente nos convence de que a criança que fomos um dia permanece viva dentro daquilo que somos hoje.
Acrescente-se a isto criticas ao movimento modernista, descrições geográficas de cidades como Juiz de Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro acompanhadas de reflexões sobre as impressões deixadas por essas cidades em momentos de abruptas mudanças e de novas consolidações pessoais. Rachel Jardim presenteia o leitor com uma obra onde o presente busca no passado uma explicação para os rumos tomados: “Nunca soube ao certo se era um ser extremamente frágil ou extremamente forte. Até hoje não sei”.
AUTOR
TIAGO R.CARVALHO
OS ANOS 40 A FICÇÃO E O REAL DE UMA ÉPOCA
Autora: Rachel Jardim
Editora: Jose Olympio
189 paginas

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