quarta-feira, 28 de maio de 2014

A BANALIDADE DO MAL: AS ENTREVISTAS DE NUREMBERG


Leon Goldensohn, de 34 anos, formado em psiquiatria pela Universidade Estadual de Ohio havia servido como oficial do exercito americano durante a Segunda Guerra Mundial. Destacado para o presídio de Nuremberg, com o objetivo de cuidar da saúde física e mental dos 22 membros do alto escalão nazista, presos ao final do conflito e acusados de cometerem crimes de guerra, sentiu-se atraído pelo “tesouro psicológico” e pela perspectiva de desvendar os supostos aspectos ocultos do mal. Nessa busca por evidências patológicas que explicassem o nível de depravação do nazismo, Goldensohn acabou redigindo centenas de paginas com suas anotações pessoais cujo conteúdo revela, entre outras coisas, uma singular particularidade do mal: a ausência de empatia.
Nas mais de 500 paginas do texto vemos homens, acusados de cometerem as maiores atrocidades de seu tempo, divagarem sobre suas famílias, seus pais, sua infância, problemas de saúde, casamentos conturbados, a perda dos filhos durante o conflito, seu nacionalismo exacerbado e seu senso de compromisso com a pátria. Goldensohn não se eximiu do impulso de anotar suas impressões particulares acerca dos entrevistados. Karl Doenitz, comandante da marinha alemã, é descrito como um sujeito “polido, de uma afabilidade meio suspeita, fala um inglês quase perfeito, mas é preciso deixá-lo bem à vontade, senão não abre a boca”; Hermann Goering, comandante chefe da força aérea nazista, se traduz na imagem de um homem com “humor instável e infantil nas atitudes”; Joachin Von Ribbentrop, Ministro das Relações Exteriores de Hitler, emerge como um homem de aparência “levemente depressiva, embora sorria com frequência ou ria agradavelmente”.
Goldensohn, que nunca anotava nada na frente de seus pacientes, ou cobaias como parece mais apropriado, conseguiu construir uma atmosfera de informalidade cujo propósito era libertar a mente das amarras da consciência. Seu método produziu relatos diversos, desde o fanatismo demonstrado por Julius Streicher, editor do “Der Sturmer” - um dos mais famosos jornais antissemitas da Alemanha, até a chocante e impressionante entrevista com Rudolf Hoess, Tenente general da SS e comandante do campo de extermínio de Auschwitz entre 1940 e 1943. Com uma frieza assustadora Hoess descreve todo o processo de extermínio no maior e mais famoso campo de concentração nazista, desde a chegada das vitimas ao campo até a cremação dos corpos. Os detalhes mórbidos como a medida exata das câmaras de gás, o tempo médio gasto nos “gaseamentos”, o numero de corpos que eram incinerados diariamente até o número exato de funcionários utilizados no processo são descritos com a clássica metodicidade prussiana.
A introdução de Robert Gellately nos fornece um quadro geral sobre as quatro acusações apresentadas pelo tribunal aos réus, bem como detalhes da rotina diária dos prisioneiros e das conturbadas reuniões pré-julgamento entre os aliados ocidentais e os soviéticos acerca dos procedimentos jurídicos que deveriam ser adotados. Apegados ao compromisso de impedir que o tribunal fosse visto como uma espécie de “vingança dos vencedores” as autoridades adotaram uma cautela retórica que fica evidente quando se percebe que nenhum dos réus foi acusado formamente de perseguir ou exterminar uma minoria especifica, como os judeus. As palavras “Holocausto” e “Genocídio” nunca foram utilizadas durante as audiências.
A leitura é uma experiência surpreendente, para dizer o mínimo, e bastante reveladora. Em muitos momentos nos sentimos transportados para dentro das celas acompanhando de perto as reinteradas e constantes alegações de inocência de homens como Ernest Kaltenbrunner cuja audácia associada a ausência de qualquer resquício de consciência foi capaz de dizer em sua frágil defesa: “Sou visto como outro Himmler” (sorrisos.) ”Mas não sou. Os jornais fazem de mim um criminoso. Nunca matei ninguém.”
POR TIAGO RODRIGUES CARVALHO
AS ENTREVISTAS DE NUREMBERG
Autor: GOLDENSOHN, LEON
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
552 Paginas.

terça-feira, 20 de maio de 2014

OS DEMÔNIOS DE DOSTOIEVSKI: A SINFONIA DO TORMENTO



“Volto à pátria e verifico que o crime já não é mais uma anomalia, mas uma prova do bom senso.”
- Piotr Stepanovitch
No século XIX centenas de grupos revolucionários radicais – niilistas, socialistas e anarquistas – agitaram o cenário político da Rússia imperial. Em 21 de novembro de 1869 o estudante S.G. Nietchaiev, na companhia de mais quatro membros da organização “Justiça sumaria do povo” (Naródnaia Raspava) assassinaram o estudante I. I. Ivanov. O crime teve repercussão em todo o país. Preocupado com os rumos destrutivos dos movimentos da esquerda radical, Dostoievski escreve o magistral romance “Os Demonios”, cujo objetivo é expor a face dos verdadeiros demônios da sociedade de sua época: o fanatismo, a busca por dominação absoluta, a subordinação total do individuo a lógica e ao rigor cientifico e o estoicismo político diante de um propósito comum.
O próprio ateísmo é duramente atacado pelo autor que defende a importância da fé religiosa na constituição de uma esfera moral. Embora se trate de um conceito primitivo e contestado por filósofos contemporâneos, como o francês Jean Paul Sartre, essa noção de que a fé purifica o homem ganhou ressonância nas palavras de um grande escritor. Não se trata apenas de uma reprodução literária de um fato real ou de uma simples propaganda antirradical e anti-ateísta. Dostoievski vai muito além desse conceito inicial criando uma obra que explora os perigos da sociedade russa de sua época.
Stiepan Trofimovitch é um professor acadêmico que havia construído uma carreira promissora no exterior. Apesar desse seu aparente sucesso profissional seus dois casamentos haviam sido um fracasso. Devido a “um turbilhão de circunstancias” - que o narrador não acha apropriado esclarecer - Stiepan é afastado de seu cargo na universidade e parte para a propriedade Skvoriechniki, uma magnífica fazenda da família Stavroguin.
A proprietária era uma rica viúva chamada Varvara Pietrovna Stavroguina, amiga de longa data de Stiepan, descrita como ossuda, de rosto longo e “rancorosa ao ponto do improvável”. Ambos possuíam uma estranha relação de amizade. No passado Stiepan havia recusado duas propostas da rica e solitária viúva para que se encarregar-se da educação particular de seu único filho. Após a morte de sua segunda esposa Stiepan, sem emprego e sem saída, resolve aceitar o convite.
Assim que chega a Skvoriechniki, Stiepan se encontra diante de uma segunda proposta, dessa vez de casamento. A ideia teria partido da própria Varvara que queria unir Stiepan a uma mulher chamada Daria Pavlovna. Varvara escondia suas reais intenções por trás dessa união arranjada: circulavam rumores de que seu filho já havia tido um relacionamento com Daria no passado e diante da expectativa do seu retorno, Varvara pretendia retirar Daria do caminho de seu único herdeiro. Stiepan, que parecia nutrir um amor platônico por Varvara sofre com a ideia do casamento, mas não encontra meios de recusar a união. Esse dilema familiar que inicia a obra “Os Demônios” se arrasta até o primeiro marco importante da obra: a recepção oficial do noivado de Daria e Stiepan. Aqui os dois principais personagens aparecem: Piotr Stiepánovitch e Nicolai Stavróguin, filhos de Stiepan e Varvara respectivamente.
Nicolai, um jovem de 25 anos, bastante conhecido por sua libertinagem havia levantado suspeitas depois que um envelope com dinheiro enviado em seu nome a Maria Timofêievna, uma mulher extremamente magra, de pescoço longo, coxa e aparentemente louca, havia sido interceptado pela própria Varvara. Os boatos de que Nicolai teria se casado em segredo com Maria preocupavam sua mãe que traçava planos diferentes para seu filho. Esse típico drama familiar da sociedade europeia do século XIX é apenas um preâmbulo do magistral romance de Fiodor Dostoievski.
Dividido em 23 capítulos e três partes a obra possui um imenso quadro de personagens, todos eles descritos em sua forma física, moral e social, tendo, portanto uma densidade absurda e fascinante. Essa construção em três dimensões expõe uma valorização estética, que na realidade está subjugada ao conteúdo moralizante da obra. Trata-se, sobretudo, de um romance da moral, aqui analisada em termos políticos é praticamente condicionada aos valores religiosos do individuo como ser social.
O que começa como uma espécie de crônica do mundo burguês, cômica e com certa dose de sarcasmo, sofre uma reviravolta espetacular a partir da terceira parte, marco clássico da obra, onde cada personagem se desdobra e revela sua verdadeira identidade moral. O autor se vale de sua genialidade criativa e nos expõe a verdade por trás da face social de cada personagem, alimentando o típico comportamento humano de consolidar a impressão inicial como uma verdade absoluta. É ali que os verdadeiros focos da narrativa emergem em sua plenitude: o niilismo - movimento caracterizado pela descrença absoluta -, e o radicalismo revolucionário.
Stepanovitch e Stavróguin fazem parte de um grupo niilista de proporções internacionais que os encarrega de iniciar uma revolução na cidade onde vivem. Juntos eles formam um grupo radical de indivíduos desprovidos de qualquer traço moralizante, movidos unicamente por um propósito comum. Chigalov, o ideólogo do grupo, teoriza um método de governo extremamente autoritário onde nove décimos da sociedade seria submetida ao controle rigoroso do décimo restante, composta pela elite intelectual.
“No esquema dele [Chigailov] cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos, e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão, nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato, mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é rebaixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. O nível elevado das ciências e das aptidões só é acessível aos talentos superiores, e os talentos superiores são dispensáveis! Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas, sempre trouxeram mais depravação do que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis o Chigaliovismo.”
Kirilov, tomado pelo “demônio de voluntarismo”, defende a teoria segundo a qual o homem que comete suicídio se torna Deus:
“Se Deus existe, toda vontade lhe pertence, e fora dessa vontade nada posso. Se ele não existe, toda vontade me pertence, e devo proclamar minha própria vontade. (...) Tenho que meter uma bala na cabeça porque o suicídio e a manifestação suprema da vontade.(...) Deus é a dor do medo da morte. Quem vence a dor e o medo se tornará Deus.”
Chátov acredita na existência de um “Deus nacional”, sendo este representado pela supremacia de um grande povo sobre os povos restantes. Além destes estão Virguinski, Liputin, Tolkatchenko, Erkel, e os dois protagonistas: o libertino Stavróguin e o insuperável Stepanovitch, a mente mais perversa da obra e um dos personagens mais diabólicos da literatura universal. Todos eles se admiram e se odeiam com igual intensidade dentro de um circulo restrito onde a idéia de revolução se deforma diante de uma lógica tão absurda que se torna destrutiva. Para cada um deles a violência é o aparo lógico de um dogmatismo que, apesar de embrionário, já manifesta sua natureza refrataria e intolerante. O ceticismo radical que os domina só realça o típico ser dostoievskano, em movimento constante entre a certeza e a incerteza.
Da terceira parte em diante o romance mergulha num turbilhão de conspirações, assassinatos, traições, suicídios até atingir o ápice da narrativa: o incêndio que toma conta da cidade e cujo objetivo era desviar a atenção da população para longe do assassinato brutal que acontecia dentro de uma das residências de um quarteirão afastado. Vemos uma sequência de atos deploráveis e indescritíveis, como o abuso de uma menina de apenas doze anos por um dos integrantes do grupo e cujo tormento moral o leva ao suicídio. O caos, a destruição, a descrença e o estoicismo fanático dão um ritmo alucinante à narrativa cujo desfecho não poderia ser menos trágico.
Ler “Os Demônios” e adentrar numa narrativa pesada, intrigante e apaixonante do inicio ao fim. Ao perceber que as ações humanas não possuem a moral como regra única, Dostoievski soube explorar esse aspecto negro e moldá-lo como recurso de criação artística antecipando a tragédia que se abateria sobre o século XX, imposta pelos exemplos de fanatismo político e ideológico como o Nazismo e o Stalinismo. Através da exposição dos males da modernidade ele extrapolou os limites de criação literária e compôs o que a historiadora Anna Carolina Huguenin chamou de “sinfonia de vozes atormentadas”.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Pintura de A. K. Savrasov – “O retorno das gralhas”: a desolação da paisagem e o mau agouro representado pelas gralhas descrevem o clima tenso e carregado do romance de Dostoievski.
Os Demônios – Fiódor Dostoievski
Editora 34
Tradução: Paulo Bezerra
704 paginas

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