terça-feira, 2 de fevereiro de 2016


“O conceito mais repleto de significado é a beleza”
– Charlie Chaplin
“O que é um homem senão sua obra? Se nada fez, o que tem para contar?”
– Elvis Presley, My Way.
Musico, roteirista, diretor, ator, humorista, empresário, artista... Gênio! Charles Spencer Chaplin, o eterno Carlitos, cujo carisma e expressividade sem igual foram responsáveis por encabeçar a vanguarda da indústria cinematográfica indo muito além do estilo de criação de sua época – o pastelão e a pantomima – redefinindo o conceito de humor, não por lhe atribuir um novo significado, mas por expor sua excelência como núcleo de criação artística e como forma de reflexão e, sobretudo protesto.
O historiador David Robinson, em sua obra “Chaplin uma biografia definitiva”, nos apresenta um vasto relato sobre a vida de um dos mais icônicos personagens do cinema. Inicialmente a obra foca sua narrativa na conturbada trajetória percorrida pelos pais do pequeno Chaplin na impiedosa Londres do final do século XIX. Seu pai, um ator de teatro alcoólatra que abandonou a família e morreu precocemente aos 37 anos. Sua mãe, também artista de teatro, vivia em asilos psiquiátricos devido a crises de insanidade constantes. O mais interessante neste ponto da obra é que Robinson não se prende a estrita exposição dos dados biográficos dos progenitores de Chaplin e nem comete um erro muito comum em biografias desse gênero: a de querer criar a imagem de uma personalidade que se constrói a revelia das relações de dependência que estabelece com o meio em que este viveu.
Logo nas primeiras paginas vemos que o atual e glamoroso mundo do cinema em nada se parecia com seus primórdios. Originário dos palcos dos teatros de variedades, onde atores mal pagos e assolados pelo alcoolismo eram obrigados a entreter uma platéia exigente, muitas vezes hostil e cuja receptividade ao humor dos palcos variava de acordo com o dia da semana - as segundas feiras eram sempre temidas pelos atores.
Aos pouco a narrativa se concentra no menino frágil que abandonou a escola para ganhar a vida como ajudante de barbearia e vendedor de flores nos tradicionais pubs londrinos. Aos 12 anos ele consegue seu primeiro emprego no teatro atuando como um jornaleiro na famosa peça Sherlock Holmes. A infância difícil de Chaplin não teve apenas a miséria como marca; as dificuldades que enfrentou para conseguir seu lugar junto ao meio artístico nos são apresentadas pelo autor ao retratar a caótica realidade dos artistas de music hall da época: “Cada artista tinha de aprender os segredos de ataque e de estrutura, a necessidade de fazer o show em um crescendo – um inicio, um meio e um final deslumbrante.”
Arrancar aplausos das multidões que lotavam os teatros nas noites de sábado era um obstáculo até para os mais experientes; para um garoto de apenas 12 anos essa era uma realidade no mínimo apavorante. E como se essas dificuldades apenas não fossem suficientes havia ainda algumas leis de licenciamento decretadas na época e que proibiam o dialogo na maioria dos teatros, com exceção de apenas dois. Devido a essa proibição os artistas tinham que se apresentar ao som de musicas de piano e recorrer à mímica para que o enredo fosse compreendido. Segundo David Robinson esse costume foi um importante incentivo ao gênero da pantomima – a arte de representar por meio de gestos. Seu sucesso como ator infantil, e a ajuda de seu meio irmão Sidney, permitiram a Chaplin conseguir um emprego na companhia de teatro de Fred Karno, um dos maiores nomes da indústria do entretenimento, conhecida por suas turnês no interior da Inglaterra. Ao saírem em turnê pelos Estados Unidos o jovem Chaplin foi então descoberto por Mack Sennet, ator e diretor das indústrias Keystone, que imediatamente reconheceu seu potencial na emergente e inovadora era do cinema. Em seus anos com a produtora Keystone, Chaplin ampliou o significado da comedia dando profundidade aos seus personagens unindo o pastelão e a pantomima a um terceiro elemento: a expressão. Seu humor não era claro, mas sugestivo, metafórico.
Inovador no estilo também o era quanto ao método: ao contrario dos outros diretores, que só refilmavam uma cena se algo de errado ocorre-se, Chaplin refazia cada cena inúmeras vezes até atingir a perfeição que desejava. Era obcecado pelo trabalho e perfeccionista ao extremo. A famosa cena da “dança dos pãezinhos” no longa “Em busca do ouro” foi refilmada onze vezes. Chaplin também não trabalhava com roteiros prontos – apenas seus últimos filmes tiveram roteiro – tudo era filmado sem um planejamento e sem uma ordem cronológica. Muitas vezes chegava aos estúdios e descartava as filmagens do dia anterior dizendo que tinha uma ideia melhor.
FOTOGRAFIA MOSTRANDO CHAPLIN AINDA CARACTERIZADO NO ESTÚDIO INCENDIADO DURANTE AS GRAVAÇÕES DE "O CIRCO".
A obra de David Robinson está dividida de acordo com a ordem cronológica de sua filmografia. Em cada capítulo vemos os dramas criativos e as etapas de produção que deram origem a clássicos como O circo, filme que deu a Chaplin seu primeiro Oscar e cujas gravações foram assoladas por eventos trágicos como a morte de sua mãe e um incêndio no estúdio; O Garoto, onde claramente Chaplin explora os dramas de sua infância pobre; Tempos Modernos, filme que reforçou sua imagem como suposto comunista – algo que Chaplin nunca foi, mas que o levou a ser perseguido durante toda a vida pelo FBI; o belíssimo Luzes da cidade; o encantador Em busca do ouro; o polemico O Grande Ditador, primeiro filme falado de Chaplin – embora ele já tenha soltado a voz, porem numa linguagem incompreensiva, em Tempos Modernos – e o ultimo no qual usou o característico traje do “vagabundo”.
O Grande Ditador foi um filme carregado de polemicas, aplaudido e criticado por um igual numero de expectadores. As semelhanças entre Charlie Chaplin e Adolf Hitler são de fato assustadoras: ambos nasceram no mesmo ano, na mesma semana e com apenas 4 dias de diferença. Se já era polemico retratar de forma cômica, satírica e debochada o homem responsável por mergulhar a Europa no pesadelo da carnificina da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o que dizer de seu famoso e impagável discurso na ultima cena do filme:
“(...) A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. (...) Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. (...) Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! (...)”
Na época em que O Grande Ditador foi lançado o conteúdo humanitário do seu discurso foi visto pela população americana como uma mensagem socialista. “A confusa recepção critica e pública de O grande Ditador revelou, para a crescente aflição de Chaplin, a extensão do sentimento pró-nazista nos Estados Unidos.” - escreveu David Robinson. Se a recepção americana ao filme havia dividido opiniões o mesmo não se pode dizer do seu sucesso imediato na Inglaterra. A estréia nos cinemas ingleses ocorreu em 16 de dezembro de 1940, momento em que a Alemanha havia intensificado seus bombardeios a Londres.
Outro filme, embora pouco conhecido, porem não menos grandioso quanto ao tema é “Monsieur Verdoux”, cujo enredo foi baseado na historia real de um assassino chamado Henri Desire Landru, morto na guilhotina em 1922. O filme apresenta, de forma irônica e genial, as contradições morais da sociedade. O cinismo com o qual seu personagem encara as convenções sociais e morais de sua época ressoam no dialogo de seu personagem durante seu julgamento:
- Que conversa é essa, sobre o bem e o mal? - Forças arbitrárias. Demasiado de uma ou de outra destrói-nos.
- O bem nunca é demais.
- O problema é que nunca tivemos o suficiente. Não sabemos. (...)
- Você é o exemplo trágico de uma vida de crime.
- Como alguém pode ser exemplo nestes tempos de crime?
- Você certamente foi, a roubar e matar pessoas.
- Era um modo de vida.
- As pessoas não vivem assim.
- É a história de grandes generais, guerras e conflitos. Tudo é um negócio. Um assassinato faz um vilão, milhares fazem um herói. A quantidade santifica, meu amigo.
Chaplin aos poucos viu sua consciência política se articular para além dos limites puramente artísticos. O “vagabundo”, que conservava a essência de um lord no estilo britânico, se transliterava no palhaço que se tornava político. Impossível não compará-lo a Plauto (C.254-184 a.c) famoso teatrólogo latino que adotava situações do cotidiano como base para seus enredos. Talvez a frase de Chaplin que mais bem resuma toda a sua obra seja: “Se você estivesse levando a serio as minhas brincadeiras de dizer verdades, você teria ouvido muitas verdades que eu insisto em dizer brincando.”
Mas nem só de feitos se constrói a historia de um homem, e David Robinson não nos apresenta apenas o artista, mas também a figura enigmática por trás dele. A maior parte das mais de 600 paginas da obra “Chaplin uma biografia definitiva” consistem em relatos sobre sua vida pessoal. Poucos poderiam imaginar que por traz do homem que fazia milhões de pessoas rirem se escondia uma figura atormentada por suas relações amorosas. Seus quatro casamentos, sempre com mulheres bem mais jovens – com idade entre 16 e 25 anos – terminaram quase sempre em escândalos e processos de separação envolvendo acordos financeiros. Somente sua ultima esposa Oona O’Neill – que na época do casamento tinha apenas 25 anos e Chaplin já tinha 54 - permaneceu ao seu lado até o fim da vida.
A obra de Robinson é um magistral retrato de uma das figuras mais influentes do século XX. Seu texto nos expõe a dialética construtiva de Chaplin: o tímido extrovertido, o vagabundo obcecado por trabalho, o diretor rígido que criava sem roteiros, o sorridente comediante cujo mau humor era lendário, o pequeno inglês que se tornou um gigante de seu tempo. Sua história, sua personalidade, seus filmes foram construídos por meio de antônimos, do contraste entre opostos.
A própria roupa de seu personagem mais famoso – a cartola pequena, as calças enormes, o paletó apertado e os sapatos grandes – reforçam seus estilo de expor o contraste cômico e igualmente assustador da sociedade: o vagabundo com roupas surradas que se comportava como um cavalheiro, a miséria que servia como amparo para o riso, o palhaço silencioso que com seus gestos e expressões atacava de forma bem humorada os dramas do século XX. Seu modo hábil de explorar as inovações técnica de seu tempo o levou a fazer do cinema uma arte. O mérito da obra de David Robinson se deve a sua capacidade de reafirmar a crença de que a historia de um filme vai muito alem daquilo que vemos nas telas.
AUTOR TIAGO R. CARVALHO
Título Chaplin uma Biografia Definitiva
Autor David Robinson
Editora Novo Século
Número de Páginas 792

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