terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A CIÊNCIA DO EXTERMINIO


Aparentemente estável e glorioso, o mundo burguês da segunda metade do século XIX já dava sinais de que o século seguinte seria dominado pela violência, pelo preconceito e, sobretudo, pelo medo. De certa forma o próprio progresso cientifico contribuiu para a intolerância e a destruição sem precedentes que se seguiria: Poícare, ao definir que o tempo e o espaço não eram constantes desafiou a mecânica clássica de Newton, rompendo a suposta estabilidade do mundo físico; Pasteur apavorou a sociedade com a descoberta de que as doenças - muitas delas letais - eram causadas por agentes invisíveis a olho nu; Darwin havia exposto sua teoria da sobrevivência do mais adaptável, criando parâmetros biológicos sobre o qual se assentaram os defensores de uma aparente “superioridade” intelectual de determinados seguimentos sociais; e o que dizer da teoria da degeneração genética do medico francês Benedicte Morel, um especialista em epilepsia latente, cujos resultados seriam visíveis somente no século XX, sob a forma de campos de extermínio.
Espantosa sob todos os pontos de vista, a perspectiva nazista é o reflexo de toda a confluência dos aspectos científicos que emergiram no século XIX em meio a uma sociedade naturalmente militarista e orgulhosa de seus feitos. A falta de ética com a qual a ciência alemã foi conduzida após a chegada de Hitler ao poder fez com que o nazismo ditasse a mais significativa ameaça de retrocesso mental, cientifico e ideológico de sua época. John Cornwell nos apresenta na obra “Os cientistas de Hitler – Ciência, guerra e o pacto com o demônio” um retrato da ciência alemã no período pré e pós Hitler, desde os avanços na manipulação de compostos orgânicos, passando pelos dilemas da física quântica e a descoberta da divisão do átomo até o inicio da era atômica.
A política de higiene racial na Alemanha é brilhantemente abordada por Cornwell que faz um paralelo com o surgimento da Eugenia em 1869, passando pelas políticas americanas e britânicas, que com seus entusiastas do método de “seleção genética”, alimentaram a noção abstrata de valor baseada em atributos físicos - essência fundamental do nazismo. As pesquisas medicas nos campos de concentração e o avanço da medicina sob o governo de Hitler são pontos polêmicos da obra: testes relacionados a queda brusca de pressão e temperatura, infecção por doenças, cremação, contaminação por armas químicas, esterilização por raios-x, injeções de hormônios e transplantes de órgãos eram realizados sem qualquer mínimo traço de moralidade ou empatia. Cornwell nos mostra que tanto sofrimento também foi capaz de produzir avanços notáveis: a descoberta dos agentes cancerígenos, a estreita relação entre raios-x e leucemia, a importância da dieta alimentar na prevenção contra diversas formas de câncer e a gigantesca campanha de prevenção – a maior que o mundo já viu – onde foram estimulados os exames de rotina, o abandono do fumo, e redução do consumo de alimentos industrializados e o inicio de uma intensa campanha de saúde publica baseada em coleta de dados estatísticos, vigilância, higiene e prevenção. Durante a leitura chega a ser desconcertante pensar que o mundo viu surgir um lado positivo, ou o melhor da natureza humana, dentro de um contexto onde o seu lado negro era evidenciado pela mais terrível e destrutiva das guerras e pela manifestação mais deplorável de preconceito em relação ao próximo.
As armas que devastaram as cidades e campos de batalha da segunda guerra mundial e as mentes que as idealizaram também são foco de atenção especial do autor, desde os projetistas de foguetes V1 e V2, aos decifradores de códigos até as armas convencionais da guerra como tanques, aviões e submarinos. Trata-se de uma excepcional crônica da ciência alemã do século XX que graças ao seu avanço tecnológico inegável, foi capaz de produzir armas que desencadearam um nível de devastação sem precedentes na história humana. Ao final da obra Cornwell expõe os desdobramentos do avanço cientifico para o período da guerra fria e levanta um debate moral sobre até que ponto indivíduos instruídos são capazes de passar por cima da ética em nome de algo que chamam de ciência. Sua assertiva final não deixa duvidas quanto a sua postura: “Seres humanos primeiro, cientistas depois.”.
AUTOR: TIAGO RODRIGUES CARVALHO
OS CIENTISTAS DE HITLER, CIENCIA, GUERRA, E O PACTO COM O DEMONIO.
Autor: CORNWELL, JOHN
Editora: IMAGO
Número de páginas: 472

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