sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

OS DEVANEIOS DO CAMINHANTE SOLITARIO


Desde o surgimento do chamado Estado moderno - final do século XIV - a centralização do poder nas mãos dos monarcas europeus era sinalizada, dentre outras coisas, pela concessão de monopólios, criação de moedas, exércitos, leis e impostos. Esse predomínio de “poder de direito divino” cambaleou até o século XVIII, quando se tornou pratica a sistematização da razão como método e a secularização do pensamento político. O poder passou a exigir uma base racional para sua legitimidade. Essa imposição deu vazão a perspectivas políticas variadas - divergentes em alguns pontos, mas que partilham de uma origem comum: a existência do chamado contrato social.
Filho de um simples relojoeiro genebriano, Jean Jacques Rousseu tornou-se um dos protagonistas de seu tempo ao revalidar a temática do contrato social. Essa nova concepção da política forneceu o impulso filosófico que caracterizou as revoltas do século XVIII. É inegável a influência da filosofia de Rousseau nos eventos do chamado “século das luzes”. Sua posição política é amplamente exposta em obras celebres como O contrato social e Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens.
Em Os devaneios do caminhante solitário, Rousseau deixou de lado o fenômeno político para se concentrar no fenômeno humano. O texto - de apenas 134 paginas - registra suas caminhadas realizadas nos arredores de Paris entre os anos de 1776 e 1778. Em muitos momentos vemos um autor amargurado e desiludido narrar às dificuldades criadas pela chegada da velhice. Em outros um homem que se rendeu aos encantos da natureza divagar sua admiração pelas flores e seus tormentos morais. A valorização do ambiente natural surge na obra como um dos traços mais marcantes da escola literária do Arcadismo – onde a simplicidade da beleza da natureza era empregada como oposição as extravagâncias da aristocracia.
Esteticamente o texto é dividido de forma que cada capitulo consiste em uma caminhada – dez no total - de um determinado dia. Na quinta caminhada, Rousseau fala sobre a felicidade e sua relação com as lembranças. Conclui que nenhum sentimento ou forma de admiração pode ser constante. O fluxo contínuo da mudança acompanha as formas de afetos aos quais somos permeáveis. Na sétima caminhada, Rousseau faz uma revelação no mínimo inusitada para um homem que se imortalizou na figura de um dos maiores pensadores de seu tempo: “o devaneio me relaxa e me diverte, a reflexão me cansa e me entristece; pensar foi sempre para mim uma ocupação penosa e sem encanto.”
A oitava caminhada é um dos textos mais reflexivos e profundos da obra. Rousseau julga o comportamento humano e condena as opiniões por considerá-las como produto das paixões. O ato em si não é avaliado a revelia das intenções por trás dos mesmos: “Em todos os males que nos acometem, olhamos mais para a intenção do que para o efeito. Uma telha que cai de um teto pode nos machucar muito, mas não nos fere mais que uma pedra atirada de propósito por uma mão maldosa”.
Em sua ultima caminhada Rousseau fala pela primeira vez sobre madame de Warens - que apesar de ter apenas 28 anos já era chamada de senhora. Seu relacionamento com madame de Warens é um dos temas mais controversos de sua historia pois na ocasião Rousseau tinha apenas 16 anos. O texto possui um tom agradável e é por si apenas bastante revelador. Vele muito apena ser lido e admirado.
AUTOR
TIAGO R. CARVALHO
OS DEVANEIOS DO CAMINHANTE SOLITARIO
Editora: L&PM EDITORES
Coleção: L&PM POCKET
Idioma: PORTUGUÊS
Ano: 2008
Nº de Páginas: 141

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016


Atualmente quando se invoca a questão do natal na Inglaterra vitoriana as opiniões se divergem e em muitos casos se complementam. Para alguns se trata da imagem de um conto de fadas com ruas cobertas de neves, pinheiros decorados, padarias abertas, bolos de frutas e famílias reunidas diante da lareira. Para outros se trata de uma espécie de hipocrisia social institucionalizada uma vez que o natal fornecia os meios através dos quais se reafirmava os ideais da tradicional família burguesa, com seus costumes aparentemente imiscíveis dentro do contexto de uma revolução industrial que havia exacerbado as discrepâncias entre riqueza e pobreza nas grandes metrópoles urbanas. No que se refere a sociedade inglesa do século XIX a “questão natalina”, portanto, preserva no seu cerne aquilo que a caracterizava e aquilo que fez dela uma singularidade absoluta: a dualidade.
Perspectivas opostas como método de interpretação e estudo eram algo que se difundiria ao longo de toda a segunda metade do século XIX, sobretudo nas ciências não exatas como a psicanálise freudiana. O inconsciente, o sobrenatural, o fantástico eram temas recorrentes sendo natural sua incorporação gradual aos meios de criação artística. E nesse contexto que se inserem as historias de fantasmas, características pelo tratamento com o qual a morte é encarada. Para os conservadores vitorianos a morte não era o fim da existência terrena, mas o limiar de uma nova forma de existência, daí porque as historias de fantasmas e terror, chamadas narrativas góticas, escritas para as noites de inverno, serem tão amplamente consumidas
Não há duvidas de que “O medico e o monstro” é um produto que carrega marcas indeléveis de seu tempo. Em 1885, Robert Louis Stevenson, na época com 35 anos de idade e com problemas financeiros, recebeu de seu editor a proposta para criar uma narrativa para o mercado de historias góticas do natal. O resultado foi um dos mais famosos textos já escritos, cuja idéia central serviu de amparo para inúmeras adaptações, seja no cinema ou nos desenhos infantis.
Em “O medico e o monstro” vemos a estranha relação entre o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde; indivíduos completamente opostos, mas que mantém uma estranha relação de amizade. Trata-se de uma obra onde o mistério consiste no fator determinante de sua grandeza, portanto quanto menos o leitor souber maior o impacto ao final da leitura. Stevenson explorou a dimensão da subjetividade empregando conceitos científicos de sua época. Conceitos da química, como as reações entre ácidos e bases que resultam na formação de sais – mais estáveis do que seus reagentes – são empregados de forma sutil na construção de uma parábola do dualismo psicofísico da natureza humana.
Hyde é o retrato da vontade humana libertada de todo o racionalismo e de qualquer censo moral fabricado pela orientação dos moldes sociais. A instabilidade desencadeada pela dissociação entre ele e o Dr. Jekyll nos leva a questionar a real relevância de nossos aspectos inconscientes na construção daquilo que somos: Seria de fato um benefício abrir mão de nossa essência primitiva? O grau de dependência entre o irracional e o racional, entre a paixão e a razão não seria uma exigência a nossa preservação?
A natureza humana preserva sua contingência e a manifesta continuamente: ora estamos alegres, ora estamos tristes, às vezes desejamos o bem e às vezes o mal, somos capazes de realizar atos altruístas e também de cometer as maiores barbáries. Essa prevalência intermitente de opostos vai de encontro ao determinismo cientifico do século XIX. Jekyll, um homem racional e de mentalidade cientifica, resolve desafiar sua própria contingência moral ao se propor criar uma substancia capaz de separar nosso lado bom do ruim.
Jekyll e Hyde ambíguos na medida de suas adversidades, e sobrepostos por sua contingência, são as bases para um questionamento no mínimo polemico: existe de fato um conflito de ordem destrutiva entre o bem e o mal ou ambos consistem num engendramento preciso e equilibrado que uma vez desfeito se torna destrutivo? Seria o ser humano perfeito uma síntese dos contrários?
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Editora: PENGUIN COMPANHIA
Idioma: PORTUGUÊS
Ano de Edição: 2015
Nº de Páginas: 160

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016


Para os cidadãos da Grécia antiga os “três grandes” poderiam significar Poseidon, Zeus e Hades, mas para aqueles que viveram e testemunharam o arrasador século XX, eram as imagens de Churchill, Roosevelt e Stalin que simbolizava a figura das três maiores potencias de sua época. Na obra “Os três Grandes”, Jonathan Fenby esmiúça a relação entre os três lideres que estavam à frente da maior coalizão armada da historia. Em um texto extraordinariamente bem escrito e amparado por vasta documentação histórica, vemos a narrativa oscila das questões diplomáticas para os dramas particulares de cada um dos três ícones da historia mundial.
Durante exatos 2174 dias esses três homens – exceto Roosevelt que morreria poucos meses antes do fim do conflito - suportaram a tensão imposta pelo maior acontecimento do século XX. Foram responsáveis por conduzir a maior mobilização de massas da historia, provocaram uma intensa mecanização e um salto tecnológico gigantesco. Para Fenby os verdadeiros protagonistas no cenário político foram Roosevelt, Stalin, Churchill e Hitler. Mussoline, Mão Tse Tung, Chiang Kai-Shek, Charles de Gaule, Tojo e Hiroito compunham o elenco de apoio.
Ocorreram apenas duas reuniões entre os três lideres, e ambas próximas do território soviético. Fenby explica que esse pouco contato entre os representantes da mais importante coalizão militar do ultimo século se deveu ao medo de Stalin de voar. Quando a aliança entre os três se formou, Churchill já estava com sessenta e sete anos, Stalin tinha sessenta e dois e Rossevelt cinquenta e nove. A narrativa de Fenby é ágil, empolgante e não se limita a questões políticas, explorando também o lado humano.
Winston Leonard Spencer Churchill é descrito como o mais impulsivo dos três. Um autêntico produto da sociedade inglesa e do imperialismo vitoriano, muito distante do tradicional gentleman. Descrito como um “grosseirão” de hábitos deploráveis e modos pouco ortodoxos. Sempre com seu charuto a mão era um alcoólatra inveterado. Sua crença exacerbada na suposta superioridade dos anglo-saxões o definia como uma versão inglesa - embora menos genocida – de Hitler. Durante um almoço em Washington, Churchill teria dito ao presidente americano: “Somos superiores.” Foi o líder que mais se movimentou durante a guerra fazendo viagens para a França, através do oceano infestado de submarinos alemães, e até para Moscou.
Roosevelt era a síntese dos Estados Unidos: um aristocrata populista que resgatou o país da grande depressão após o colapso financeiro de 1929. Foi o único dos três a frequentar uma universidade. Como homem político Roosevelt é descrito como um manipulador, visionário e determinado. Como pessoa surge como um homem egoísta, inescrupuloso e desconfiado. Apesar da fachada carismática do líder americano o mesmo possuía uma natureza dominada por um ostracismo singular. Era avesso a qualquer forma de intimidade com terceiros e plenamente convencido de suas capacidades intelectuais. Harry Truman, que assumiu a presidência após a morte de Rossevelt, o descreveu como o “homem mais frio que já conheci.”
Iosef Vissarionovich Djungashvili, ou simplesmente Stalin, aparece como o rústico “urso” soviético. De origem humilde, Stalin era filho de um sapateiro alcoólatra com uma lavadeira. Um ex-seminarista que durante a juventude roubava bancos para financiar o partido de Lenin. Segundo Fenby, Stalin foi um homem que havia se reinventado - mudará seu próprio nome e a sua data de nascimento – e que assumiu o comando de um país rural e o converteu em uma super potencia nuclear. Sua praticidade e desprezo pela vida fizeram dele um dos maiores genocidas de todos os tempos. Hitler era apenas um aluno ao seu lado. Averell Harriman o considerava mais realista que Churchill, mais bem informado que Roosevelt e o mais eficaz comandante dos três.
Stalin era um homem baixo, possuía apenas 1,65m, rosto marcado pela varíola, possuía olhos cor de mel e mãos enormes - quase um vilão dos quadrinhos com suas desproporções. A maioria dos que o conheceram notaram seu habito de nunca encarar alguém diretamente nos olhos. Desconfiado e extremamente vingativo era capaz de manter seu ódio por anos e usá-lo posteriormente. Metódico ao extremo Stalin era um burocrata exemplar, possuía uma memória admirável e era mestre em fazer perguntas incisivas que evidenciassem a fraqueza de seus interlocutores. Roosevelte era mais adepto aos textos escritos do que das performances orais. O presidente americano era fascinado por sua coleção de selos - avaliada em 80 mil dólares - e geralmente terminava seus trabalhos antes do jantar, ao contrario de Stalin e Churchill que costumavam trabalhar até as primeiras horas da madrugada. Stalin se levantava as 11 da manha, assim como Churchill que tinha o habito de ler os jornais na cama enrolado em seu roupão multicolorido de algodão. Churchill era um homem mimado, mas de certa forma benevolente, ao contrario de Stalin, que gostava de humilhar seus subordinados em situações regadas a bebidas.
Roosevelt gostava de fazer exercícios, apesar da sua limitação física causada pela Poliomielite. Churchill gostava de trabalhos de alvenaria e pintura, Stalin era apaixonado por jardinagem e se divertia com seus canteiros de rosas e plantações de limões, mas era avesso a pratica de exercícios, principalmente a natação.
Stalin era o típico sujeito manipulador que gostava mais de prestar atenção nas conversas a sua volta do que falar, economizava palavras que talvez por deixarem de ser ditas diziam muita coisa. Churchill falava compulsivamente. Segundo relatos o Primeiro ministro inglês teria falado ininterruptamente em uma reunião de cúpula das oito da noite até uma e meia da madrugada. Roosevelt era divagador nato. Em muitas situações permanecia neutro diante de um debate retórico, permitindo-se apenas uma rápida, às vezes nem tanto, divagação ao final do mesmo onde pesava as considerações de ambas as partes para um consenso final. Era a típica, e calculada imagem do presidente americano no cenário internacional: uma espécie de arbitro das questões diplomática.
Preparar coquetéis era uma das paixões de Roosevelt. Gostava de bebidas suaves, como martinis e outros destilados associados a frutas. Churchill tinha o habito de tomar uísque logo pela manha. No almoço tomava seu costumeiro brandy, no jantar era acompanhado por vinho ou champanhe e antes de dormir tomava mais algumas doses de uísque. Em certa ocasião, na embaixada britânica no Cairo, teria pedido vinho branco para o café da manha logo depois de já ter tomado dois scotchs. Ao regressar do seu primeiro encontro com Roosevelt Churchil teria pedido um licor para acompanha-lo durante o almoço, depois de alguns minutos pediu conhaque. Quando o garçon o lembrou de que já havia pedido o licor em menos de dez minutos o primeiro ministro respondeu: “Eu sei, quero o brandy para limpa-lo.”
Stalin gostava de vinhos georgianos, mas evitava a tradicional vodka. Preferia embebedar as pessoas a sua volta para “soltar-lhes a língua”. Seus grandes banquetes no Kremlin eram regados a bebidas e Stalin incentivava aqueles que o cercava a consumir destilados enquanto ele permanecia com sua dose de vinho diluído em água.
A narrativa se inicia com a descrição do famoso jantar em Teerã, no dia 29 de novembro de 1943, e segue intercalando os dilemas pessoais e as questões diplomáticas enfrentadas pelos três ícones. Fenby foi capaz de envolver os aspectos político – tão maçantes para a maioria dos leitores – com uma linguagem não apenas clara, mas também cativante. Em suas 487 paginas vemos como um dos maiores eventos do século XX culminaria nos temores da guerra fria
AUTOR TIAGO R. CARVALHO
Editora: NOVA FRONTEIRA -
Idioma: PORTUGUÊS
Ano: 2009
Nº de Páginas: 487

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A CIÊNCIA DO EXTERMINIO


Aparentemente estável e glorioso, o mundo burguês da segunda metade do século XIX já dava sinais de que o século seguinte seria dominado pela violência, pelo preconceito e, sobretudo, pelo medo. De certa forma o próprio progresso cientifico contribuiu para a intolerância e a destruição sem precedentes que se seguiria: Poícare, ao definir que o tempo e o espaço não eram constantes desafiou a mecânica clássica de Newton, rompendo a suposta estabilidade do mundo físico; Pasteur apavorou a sociedade com a descoberta de que as doenças - muitas delas letais - eram causadas por agentes invisíveis a olho nu; Darwin havia exposto sua teoria da sobrevivência do mais adaptável, criando parâmetros biológicos sobre o qual se assentaram os defensores de uma aparente “superioridade” intelectual de determinados seguimentos sociais; e o que dizer da teoria da degeneração genética do medico francês Benedicte Morel, um especialista em epilepsia latente, cujos resultados seriam visíveis somente no século XX, sob a forma de campos de extermínio.
Espantosa sob todos os pontos de vista, a perspectiva nazista é o reflexo de toda a confluência dos aspectos científicos que emergiram no século XIX em meio a uma sociedade naturalmente militarista e orgulhosa de seus feitos. A falta de ética com a qual a ciência alemã foi conduzida após a chegada de Hitler ao poder fez com que o nazismo ditasse a mais significativa ameaça de retrocesso mental, cientifico e ideológico de sua época. John Cornwell nos apresenta na obra “Os cientistas de Hitler – Ciência, guerra e o pacto com o demônio” um retrato da ciência alemã no período pré e pós Hitler, desde os avanços na manipulação de compostos orgânicos, passando pelos dilemas da física quântica e a descoberta da divisão do átomo até o inicio da era atômica.
A política de higiene racial na Alemanha é brilhantemente abordada por Cornwell que faz um paralelo com o surgimento da Eugenia em 1869, passando pelas políticas americanas e britânicas, que com seus entusiastas do método de “seleção genética”, alimentaram a noção abstrata de valor baseada em atributos físicos - essência fundamental do nazismo. As pesquisas medicas nos campos de concentração e o avanço da medicina sob o governo de Hitler são pontos polêmicos da obra: testes relacionados a queda brusca de pressão e temperatura, infecção por doenças, cremação, contaminação por armas químicas, esterilização por raios-x, injeções de hormônios e transplantes de órgãos eram realizados sem qualquer mínimo traço de moralidade ou empatia. Cornwell nos mostra que tanto sofrimento também foi capaz de produzir avanços notáveis: a descoberta dos agentes cancerígenos, a estreita relação entre raios-x e leucemia, a importância da dieta alimentar na prevenção contra diversas formas de câncer e a gigantesca campanha de prevenção – a maior que o mundo já viu – onde foram estimulados os exames de rotina, o abandono do fumo, e redução do consumo de alimentos industrializados e o inicio de uma intensa campanha de saúde publica baseada em coleta de dados estatísticos, vigilância, higiene e prevenção. Durante a leitura chega a ser desconcertante pensar que o mundo viu surgir um lado positivo, ou o melhor da natureza humana, dentro de um contexto onde o seu lado negro era evidenciado pela mais terrível e destrutiva das guerras e pela manifestação mais deplorável de preconceito em relação ao próximo.
As armas que devastaram as cidades e campos de batalha da segunda guerra mundial e as mentes que as idealizaram também são foco de atenção especial do autor, desde os projetistas de foguetes V1 e V2, aos decifradores de códigos até as armas convencionais da guerra como tanques, aviões e submarinos. Trata-se de uma excepcional crônica da ciência alemã do século XX que graças ao seu avanço tecnológico inegável, foi capaz de produzir armas que desencadearam um nível de devastação sem precedentes na história humana. Ao final da obra Cornwell expõe os desdobramentos do avanço cientifico para o período da guerra fria e levanta um debate moral sobre até que ponto indivíduos instruídos são capazes de passar por cima da ética em nome de algo que chamam de ciência. Sua assertiva final não deixa duvidas quanto a sua postura: “Seres humanos primeiro, cientistas depois.”.
AUTOR: TIAGO RODRIGUES CARVALHO
OS CIENTISTAS DE HITLER, CIENCIA, GUERRA, E O PACTO COM O DEMONIO.
Autor: CORNWELL, JOHN
Editora: IMAGO
Número de páginas: 472

“O conceito mais repleto de significado é a beleza”
– Charlie Chaplin
“O que é um homem senão sua obra? Se nada fez, o que tem para contar?”
– Elvis Presley, My Way.
Musico, roteirista, diretor, ator, humorista, empresário, artista... Gênio! Charles Spencer Chaplin, o eterno Carlitos, cujo carisma e expressividade sem igual foram responsáveis por encabeçar a vanguarda da indústria cinematográfica indo muito além do estilo de criação de sua época – o pastelão e a pantomima – redefinindo o conceito de humor, não por lhe atribuir um novo significado, mas por expor sua excelência como núcleo de criação artística e como forma de reflexão e, sobretudo protesto.
O historiador David Robinson, em sua obra “Chaplin uma biografia definitiva”, nos apresenta um vasto relato sobre a vida de um dos mais icônicos personagens do cinema. Inicialmente a obra foca sua narrativa na conturbada trajetória percorrida pelos pais do pequeno Chaplin na impiedosa Londres do final do século XIX. Seu pai, um ator de teatro alcoólatra que abandonou a família e morreu precocemente aos 37 anos. Sua mãe, também artista de teatro, vivia em asilos psiquiátricos devido a crises de insanidade constantes. O mais interessante neste ponto da obra é que Robinson não se prende a estrita exposição dos dados biográficos dos progenitores de Chaplin e nem comete um erro muito comum em biografias desse gênero: a de querer criar a imagem de uma personalidade que se constrói a revelia das relações de dependência que estabelece com o meio em que este viveu.
Logo nas primeiras paginas vemos que o atual e glamoroso mundo do cinema em nada se parecia com seus primórdios. Originário dos palcos dos teatros de variedades, onde atores mal pagos e assolados pelo alcoolismo eram obrigados a entreter uma platéia exigente, muitas vezes hostil e cuja receptividade ao humor dos palcos variava de acordo com o dia da semana - as segundas feiras eram sempre temidas pelos atores.
Aos pouco a narrativa se concentra no menino frágil que abandonou a escola para ganhar a vida como ajudante de barbearia e vendedor de flores nos tradicionais pubs londrinos. Aos 12 anos ele consegue seu primeiro emprego no teatro atuando como um jornaleiro na famosa peça Sherlock Holmes. A infância difícil de Chaplin não teve apenas a miséria como marca; as dificuldades que enfrentou para conseguir seu lugar junto ao meio artístico nos são apresentadas pelo autor ao retratar a caótica realidade dos artistas de music hall da época: “Cada artista tinha de aprender os segredos de ataque e de estrutura, a necessidade de fazer o show em um crescendo – um inicio, um meio e um final deslumbrante.”
Arrancar aplausos das multidões que lotavam os teatros nas noites de sábado era um obstáculo até para os mais experientes; para um garoto de apenas 12 anos essa era uma realidade no mínimo apavorante. E como se essas dificuldades apenas não fossem suficientes havia ainda algumas leis de licenciamento decretadas na época e que proibiam o dialogo na maioria dos teatros, com exceção de apenas dois. Devido a essa proibição os artistas tinham que se apresentar ao som de musicas de piano e recorrer à mímica para que o enredo fosse compreendido. Segundo David Robinson esse costume foi um importante incentivo ao gênero da pantomima – a arte de representar por meio de gestos. Seu sucesso como ator infantil, e a ajuda de seu meio irmão Sidney, permitiram a Chaplin conseguir um emprego na companhia de teatro de Fred Karno, um dos maiores nomes da indústria do entretenimento, conhecida por suas turnês no interior da Inglaterra. Ao saírem em turnê pelos Estados Unidos o jovem Chaplin foi então descoberto por Mack Sennet, ator e diretor das indústrias Keystone, que imediatamente reconheceu seu potencial na emergente e inovadora era do cinema. Em seus anos com a produtora Keystone, Chaplin ampliou o significado da comedia dando profundidade aos seus personagens unindo o pastelão e a pantomima a um terceiro elemento: a expressão. Seu humor não era claro, mas sugestivo, metafórico.
Inovador no estilo também o era quanto ao método: ao contrario dos outros diretores, que só refilmavam uma cena se algo de errado ocorre-se, Chaplin refazia cada cena inúmeras vezes até atingir a perfeição que desejava. Era obcecado pelo trabalho e perfeccionista ao extremo. A famosa cena da “dança dos pãezinhos” no longa “Em busca do ouro” foi refilmada onze vezes. Chaplin também não trabalhava com roteiros prontos – apenas seus últimos filmes tiveram roteiro – tudo era filmado sem um planejamento e sem uma ordem cronológica. Muitas vezes chegava aos estúdios e descartava as filmagens do dia anterior dizendo que tinha uma ideia melhor.
FOTOGRAFIA MOSTRANDO CHAPLIN AINDA CARACTERIZADO NO ESTÚDIO INCENDIADO DURANTE AS GRAVAÇÕES DE "O CIRCO".
A obra de David Robinson está dividida de acordo com a ordem cronológica de sua filmografia. Em cada capítulo vemos os dramas criativos e as etapas de produção que deram origem a clássicos como O circo, filme que deu a Chaplin seu primeiro Oscar e cujas gravações foram assoladas por eventos trágicos como a morte de sua mãe e um incêndio no estúdio; O Garoto, onde claramente Chaplin explora os dramas de sua infância pobre; Tempos Modernos, filme que reforçou sua imagem como suposto comunista – algo que Chaplin nunca foi, mas que o levou a ser perseguido durante toda a vida pelo FBI; o belíssimo Luzes da cidade; o encantador Em busca do ouro; o polemico O Grande Ditador, primeiro filme falado de Chaplin – embora ele já tenha soltado a voz, porem numa linguagem incompreensiva, em Tempos Modernos – e o ultimo no qual usou o característico traje do “vagabundo”.
O Grande Ditador foi um filme carregado de polemicas, aplaudido e criticado por um igual numero de expectadores. As semelhanças entre Charlie Chaplin e Adolf Hitler são de fato assustadoras: ambos nasceram no mesmo ano, na mesma semana e com apenas 4 dias de diferença. Se já era polemico retratar de forma cômica, satírica e debochada o homem responsável por mergulhar a Europa no pesadelo da carnificina da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o que dizer de seu famoso e impagável discurso na ultima cena do filme:
“(...) A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. (...) Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. (...) Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! (...)”
Na época em que O Grande Ditador foi lançado o conteúdo humanitário do seu discurso foi visto pela população americana como uma mensagem socialista. “A confusa recepção critica e pública de O grande Ditador revelou, para a crescente aflição de Chaplin, a extensão do sentimento pró-nazista nos Estados Unidos.” - escreveu David Robinson. Se a recepção americana ao filme havia dividido opiniões o mesmo não se pode dizer do seu sucesso imediato na Inglaterra. A estréia nos cinemas ingleses ocorreu em 16 de dezembro de 1940, momento em que a Alemanha havia intensificado seus bombardeios a Londres.
Outro filme, embora pouco conhecido, porem não menos grandioso quanto ao tema é “Monsieur Verdoux”, cujo enredo foi baseado na historia real de um assassino chamado Henri Desire Landru, morto na guilhotina em 1922. O filme apresenta, de forma irônica e genial, as contradições morais da sociedade. O cinismo com o qual seu personagem encara as convenções sociais e morais de sua época ressoam no dialogo de seu personagem durante seu julgamento:
- Que conversa é essa, sobre o bem e o mal? - Forças arbitrárias. Demasiado de uma ou de outra destrói-nos.
- O bem nunca é demais.
- O problema é que nunca tivemos o suficiente. Não sabemos. (...)
- Você é o exemplo trágico de uma vida de crime.
- Como alguém pode ser exemplo nestes tempos de crime?
- Você certamente foi, a roubar e matar pessoas.
- Era um modo de vida.
- As pessoas não vivem assim.
- É a história de grandes generais, guerras e conflitos. Tudo é um negócio. Um assassinato faz um vilão, milhares fazem um herói. A quantidade santifica, meu amigo.
Chaplin aos poucos viu sua consciência política se articular para além dos limites puramente artísticos. O “vagabundo”, que conservava a essência de um lord no estilo britânico, se transliterava no palhaço que se tornava político. Impossível não compará-lo a Plauto (C.254-184 a.c) famoso teatrólogo latino que adotava situações do cotidiano como base para seus enredos. Talvez a frase de Chaplin que mais bem resuma toda a sua obra seja: “Se você estivesse levando a serio as minhas brincadeiras de dizer verdades, você teria ouvido muitas verdades que eu insisto em dizer brincando.”
Mas nem só de feitos se constrói a historia de um homem, e David Robinson não nos apresenta apenas o artista, mas também a figura enigmática por trás dele. A maior parte das mais de 600 paginas da obra “Chaplin uma biografia definitiva” consistem em relatos sobre sua vida pessoal. Poucos poderiam imaginar que por traz do homem que fazia milhões de pessoas rirem se escondia uma figura atormentada por suas relações amorosas. Seus quatro casamentos, sempre com mulheres bem mais jovens – com idade entre 16 e 25 anos – terminaram quase sempre em escândalos e processos de separação envolvendo acordos financeiros. Somente sua ultima esposa Oona O’Neill – que na época do casamento tinha apenas 25 anos e Chaplin já tinha 54 - permaneceu ao seu lado até o fim da vida.
A obra de Robinson é um magistral retrato de uma das figuras mais influentes do século XX. Seu texto nos expõe a dialética construtiva de Chaplin: o tímido extrovertido, o vagabundo obcecado por trabalho, o diretor rígido que criava sem roteiros, o sorridente comediante cujo mau humor era lendário, o pequeno inglês que se tornou um gigante de seu tempo. Sua história, sua personalidade, seus filmes foram construídos por meio de antônimos, do contraste entre opostos.
A própria roupa de seu personagem mais famoso – a cartola pequena, as calças enormes, o paletó apertado e os sapatos grandes – reforçam seus estilo de expor o contraste cômico e igualmente assustador da sociedade: o vagabundo com roupas surradas que se comportava como um cavalheiro, a miséria que servia como amparo para o riso, o palhaço silencioso que com seus gestos e expressões atacava de forma bem humorada os dramas do século XX. Seu modo hábil de explorar as inovações técnica de seu tempo o levou a fazer do cinema uma arte. O mérito da obra de David Robinson se deve a sua capacidade de reafirmar a crença de que a historia de um filme vai muito alem daquilo que vemos nas telas.
AUTOR TIAGO R. CARVALHO
Título Chaplin uma Biografia Definitiva
Autor David Robinson
Editora Novo Século
Número de Páginas 792

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