“O nascimento e a destruição da Comuna de Paris, um dos mais trágicos eventos que contribuíram para definir o século XIX, ressoam ainda hoje. Nas ruas de Paris, o exercito de Thiers derrubou a tiros milhares de homens e mulheres, mesmo que não participassem dos combates, e algumas crianças. Soldados executaram muitos atuarem na defesa da comuna; outros morreram por seus trajes de trabalhadores, restos de uniformes da Guarda Nacional parisiense, ou simplesmente pelo modo de falar. Os massacres realizados pelas tropas francesas contra seus próprios compatriotas prenunciaram os demônios do século seguinte. Você podia ser derrubado a tiros por ser quem você era, porque queria ser livre. Este talvez tenha sido o principal significado da Semana Sangrenta, de 21 a 28 de maio de 1871, o maior massacre da Europa no século XIX.”
- John Merriman
Em 1870 a Espanha estava sem um rei. O trono estava vago há dois anos e o parlamento espanhol decidiu oferecê-lo a Leopoldo de Hohenzollern – parente do rei da Prússia - país dominado pela figura política de seu chanceler Otto Von Bismarck que buscava unificar os fragmentados Estados alemães em um poderoso império.
A ideia de um império forte bem ao lado de suas linhas de fronteira não agradava ao imperador francês Napoleão III que através da política tentava impedir que os Estados prussianos do sul fossem unificados. As noticias sobre a concessão do trono espanhol a um nome ligado ao rei da Prússia aumentaram as pressões francesas sobre os Estados do sul.
Bismarck sabia que para conquistar a sonhada unificação seria preciso eliminar a França do cenário político, é a solução para isso foi à guerra. O chanceler reuniu um poderoso exercito e deu iniciou a manobras políticas de provocação para forçar Napoleão III a declarar guerra a Prússia. Ao colocar os franceses na condição de agressores Bismarck conseguiu o apoio dos Estados prussianos do sul, exatamente onde a França possuía maior influencia. A chamada Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) terminou com a derrota francesa.
Napoleão III foi feito prisioneiro em Sedan onde assinou a capitulação. A França estava naquele momento a mercê das tropas prussianas. Em Paris as ruas foram tomadas por revoltas, o Império foi abolido e a República restaurada. Uma assembléia nomeou o ministro Louis Adolphe Thiers como representante do poder executivo.
Enquanto isso tropas prussianas cercavam Paris dando inicio a um dos períodos mais negros da capital francesa. Por vários meses a população resistiu ao terror da fome e dos canhões que diariamente disparavam contra a cidade. Thiers, no entanto, decidiu encerrar o conflito. Reunido em Versalhes com uma assembléia ele ofereceu a rendição aos prussianos. Para os parisienses que resistiram há tanto tempo aquilo era um ato de traição.
Em janeiro de 1871 o governo em Versalhes se rendeu oficialmente aos prussianos. O exercito francês entregou suas armas, mas a Guarda Nacional de Paris se recusou. Tropas enviadas de Versalhes tentaram confiscar os 246 canhões da Guarda Nacional, mas foram impedidos pela população dos distritos mais radicais da cidade. Thiers ordenou que as tropas leais ao governo de Versalhes se retirassem de Paris: o plano era reagrupar as tropas para um posterior ataque a cidade. Assim que as tropas prussianas abandonaram os arredores de Paris o governo de Thiers aprovou três medidas que praticamente lançaram a Guarda Nacional parisiense no caminho da revolta armada.
A primeira foi o fim da moratória sobre os itens penhorados. Aqueles que não resgatassem imediatamente os itens depositados nas casas de penhores perderiam o direito de resgatá-los em uma ocasião posterior. 2300 pessoas haviam penhorado seus colchões e 1500 pares de tesouras haviam sido penhoradas por costureiras famintas. A segunda foi o fim da moratória sobre os alugueis. Quem não pagasse os alugueis atrasados seria colocado na rua. A terceira foi o fim do pagamento diário, no valor de 1,50 francos, aos membros da Guarda Nacional. Paris havia acabado de enfrentar um cerco de vários meses, sem emprego a população se viu obrigada a penhorar seus pertences para conseguir algum dinheiro, o pagamento dos alugueis foi deixado de lado, pois a prioridade era a alimentação. A escassez de alimentos levou as pessoas a se alimentarem de animais domésticos e ratos. Ate mesmo os animais do Zoológico foram mortos para servirem de alimento.
Como Thiers esperava que essa população esgotada e falida resgata-se seus bens penhorados e pagasse os alugueis é um mistério. No mínimo pode-se questionar se estas medidas não foram claramente direcionadas a lançar a população no caminho da transgressão e justificar a repressão posterior.
Paris tornou-se um caos político. A força policial havia deixado de existir, barricadas foram erguidas nas ruas, Republicanos e Socialistas fundaram um governo municipal isolado do restante do país: era o dia 18 de março de 1871, inicio da trágica e sangrenta Comuna de Paris.
“A comuna de Paris 1871: origens e massacre”, do historiador John Merriman, é uma obra que reescreve os detalhes acerca do maior massacre europeu do século XIX. A reconstrução da linha de eventos ocorre a partir do recrudescimento dos focos de tensão entre a classe operaria e o governo do segundo império de Napoleão III – um líder pouco carismático e um político incompetente que governava um país onde nas ultimas seis décadas viu três de seus reis serem expulsos de seus tronos.
O autor soube narrar de forma bastante fluida as conseqüências políticas e econômicas da guerra franco prussiana. A guerra em si é retratada de forma rápida e superficial o que é bastante compreensível, pois o foco da obra não é esse. Quando ele se dispõe a abordar alguns aspectos mais técnicos ligados a guerra ele o faz de forma que estas informações possam complementar a narrativa posterior como, por exemplo, a descrição dos armamentos utilizados por franceses e alemães que são os mesmo utilizados durante o cerco prussiano a Paris e durante a resistência da comuna. Nenhuma informação irrelevante para o desenvolvimento posterior é incorporado ao texto o que é de fato um aspecto muito positivo.
Um aspecto que não poderia deixar de comentar é que logo nos capítulos iniciais Merriman explora a decadência do armamento francês em face aos de seus rivais prussianos, no entanto em dois aspectos os franceses possuíam vantagem: estavam equipados como o moderno fuzil
Chassepot – que era carregado pela culatra – e também possuíam uma versão rudimentar de metralhadora com 37 canos. Aparentemente estas inovações técnicas dos armamentos deveriam funcionar como uma defesa para o próprio povo francês, mas o que choca terrivelmente é ver que essas armas foram infinitamente mais eficazes para massacrar o povo francês do que para defendê-lo.
O texto é muito bem dividido e retrata de forma competente a geografia social da Paris do século XIX, a tensão entre as classes, os problemas econômicos da França e o seu impacto sobre a classe trabalhadora. A dependência dos mais pobres as políticas de governo, sobretudo a relacionada aos alugueis e ao pagamento de salário aos membros da Guarda Nacional, são trabalhadas num tom muito menos político do que se costuma encontrar em textos do gênero. Os homens e mulheres que engrossaram as fileiras da Comuna não são taxados como socialistas ou como membros de um grupo político de esquerda qualquer, mas como trabalhadores comuns: costureiras, artesãos, pintores e pequenos negociantes. Merriman deu uma face humana a um evento histórico que sempre foi tratado apenas como uma polarização ideológica.
Didaticamente é possível perceber uma divisão textual da obra em três atos: no primeiro o período pré-guerra franco-prussiana; no segundo o período da Comuna e do cerco prussiano a Paris e no terceiro o massacre. O autor utilizou um recurso que eu pessoalmente gosto muito em textos históricos que é começar narrando um acontecimento sem recorrer a muitas explicações sobre ele e em seguida retroceder no tempo a narrativa. É como se ele desse ao leitor uma pequena fração do que ocorrerá mais a frente. Esse recurso quando bem utilizado fica impressionante. Poucas vezes vi um autor trabalhar tão bem esse mecanismo quanto Simom Sebag Montefiore no magnífico
“O jovem Stalin” ou Max Gallo em
“A revolução francesa: as armas cidadãos".
Dois pontos interessantes são trabalhados pela narrativa: o florescimento da arte em Paris e a liberdade de imprensa durante o governo da Comuna. Uma comissão artística liderada pelo pintor Gustave Colbert e por nomes como Jean François Millet e Edouard Manet buscaram romper as imposições da Academia de Belas Artes que anulava a criatividade artística.
A questão da liberdade de imprensa durante a Comuna é algo que deve ser visto com certa moderação, pois o governo concedeu liberdade a alguns jornais, mas também proibiu que muitos outros fossem impressos, no entanto havia muito mais liberdade de imprensa durante a Comuna do que durante o Império de Napoleão III.
Na terceira parte da obra ocorre uma mudança brusca do tom narrativo. O texto mergulha na exposição crua de uma matança sem fim. Chega a um ponto em que o leitor se pergunta se vale à pena continuar lendo tanta brutalidade. As tropas de Thiers vencem com extrema facilidade as defesas dos
comunards que em desespero começaram a atear fogo nos prédios para frear o avanço inimigo.
À medida que avançam os soldados de Versalhes realizaram execuções sumarias: homens, mulheres e crianças foram fuziladas ou mortas de diversas formas diante dos olhares de aprovação dos “homens das altas classes”. Tudo isso é narrado por Merriman de forma crua e brutal. Trata-se de uma obra de fôlego que não poupa o leitor do quadro de carnificina que caracteriza a Comuna de Paris, o maior massacre europeu do século XIX. Vale muito a pena ser lido!
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
A COMUNA DE PARIS 1871: ORIGENS E MASSACRE
Autor: MERRIMAN, JOHN
Editora: ROCCO
Assunto: História
Idioma: PORTUGUÊS
Ano: 2015
Encadernação: BROCHURA
Nº de Páginas: 400
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