terça-feira, 4 de outubro de 2016

A OUTRA VOLTA DO PARAFUSO


O terror quase sempre se manifesta por meio da morte. O medo do desconhecido e da perda são fenômenos que caracterizam narrativas góticas. Alguém sempre morre! É preciso uma vitima que desencadeie o processo do medo. Em “A outra volta do parafuso” a primeira vitima é a inocência.
Em uma noite de 25 de dezembro um grupo de amigos se reúne em uma velha casa de Londres para contar historias de terror. Um deles, chamado Douglas, relata conhecer a mais terrível de todas. Trata-se da história de uma governanta – cujo nome não é mencionado em nenhum momento – contratada para trabalhar em uma enorme propriedade na região de Bly, Inglaterra. Sua função seria cuidar da pequena Flora e do encantador Miles, sobrinhos do rico proprietário da mansão, um homem aparentemente muito ocupado que a encarrega de tomar todas as decisões necessárias para cuidar das duas crianças. Pouco depois de sua chegada em Bly a governanta começa a ser atormentada pela visão de dois fantasmas e é em torno destas misteriosas aparições que o enredo se desenvolve.
Mesmo não tendo achado a narrativa cativante e a história muito envolvente ainda assim considero “A outra volta do parafuso” uma grande obra é uma das mais assustadoras historias que já li. A grandeza desta obra somente começa a emergir quando a leitura chega ao fim, isto porque somente após concluir o texto e que podemos desconstruir suas camadas literárias e enxergar a surpreendente interpretação psicológica por trás do texto.
Existem basicamente duas linhas de interpretação para a obra de Henry James. A primeira parte do principio de que os fantasmas vistos pela governanta de fato existiam e a história se resumiria portanto a uma mulher assombrada por dois seres do além que agem em conjunto com as duas crianças. Nessa interpretação encontramos espaço tanto para o debate quanto a existência de vida após a morte, quanto para a questão do grau de inocência das duas crianças. Ate que ponto dois seres aparentemente inofensivos podem se tornar a fonte do mal?
A segunda linha de interpretação parte do principio de que os fantasmas não existiam e que, portanto, eram uma projeção mental da própria governanta no sentido de tornar legitimo suas atitudes. É exatamente essa linha de interpretação que torna “A outra volta do parafuso” uma história assustadora: a governanta era naturalmente ruim é o seu desejo incontrolável de fazer o mal sobrepujava sua vontade de fazer o bem. Inconscientemente ela criava a existência de duas figuras assustadoras para que por meio delas pudesse torturar as duas crianças através do medo. Temer o que não se vê: eis o poder cruel da sugestão. Era ela que torcia cada vez mais o parafuso da espiral de paranóias de sua mente.
Em primeiro lugar nenhum outro personagem viu, ou alegou já ter visto em outra ocasião qualquer, um ou os dois fantasmas alegados pela governanta. Ao longo do texto os dois fantasmas são associados a dois antigos empregados da residência: a Sra. Jessel, preceptora anterior da pequena Flora, e o Sr. Quint, antigo funcionário e muito próximo de Miles. O Sr. Quint e a Sra. Jessel pareciam ter tido um caso amoroso que naturalmente chegou ao fim com a morte de ambos.
No entanto, quem diz que as duas figuras vistas pela governanta são os fantasmas de Quint e Jessel é outra funcionaria da propriedade, a Sra. Grose. É ela quem associa a descrição física da governanta aos dois antigos empregados. A própria Sra. Grose nunca chegou a ver os dois fantasmas, nem mesmo na ocasião em que a governanta se encontra na sua presença e alega ter uma das figuras assombrosas diante de seus olhos. Ocasião esta em que pela primeira vez levantamos duvidas sobre a sanidade da personagens. Alguns outros mistérios do enredo contribuem para desviar nossa atenção como o fato do pequeno Miles ter sido expulso da escola depois de ter dito “algumas coisas”.
Se atentarmos para as etapas de construção do estado de paranóia veremos o quanto a obra de Henry James é atual. A mídia hoje está cheia de exemplos de indivíduos que matam ou perseguem figuras publicas. São indivíduos solitários que encontram na imaginação o amparo para sua existência privada do contato humano. O que ocorre na mente de tais indivíduos? Seria uma pretensão absurda afirmar qualquer coisa sobre a mente humana, mas existem teorias que são no mínimo bastante satisfatórias. Inicialmente essas pessoas criam em sua mente um ideal de beleza e de personalidade. Junta-se um nariz perfeito e um cabelo loiro em um corpo de silhueta definida. Um sorriso alegre, um olhar melancólico e uma voz suave dão forma e uma personalidade humilde e carismática! Pronto, está construído o monstro que cada dr. Victor Frankestein se predispõe a construir a partir de seus gostos cognitivos.
Acontece é que na grande maioria dos casos essas pessoas possuem uma imaginação tão deficiente que para criar esses ícones máximos de admiração busca-se um elemento de referência, que pode ser tanto um rosto quanto um estilo de vida considerados como perfeitos. Com o passar do tempo essa realidade fabricada se torna cada vez mais distante, cada vez mais impossível de ser alcançada. Nesse momento o sonho se transforma em pesadelo. O que antes era um objetivo torna-se fonte de sua tormenta. Adquire-se um ódio que não pode ser contido e que acaba sendo direcionado para aquele objeto que anteriormente havia sido fonte de admiração. Busca-se matar o próprio ídolo, como bem disse J.D. Salinger.
Mas onde exatamente essa teoria se aplica ao enredo de “A outra volta do parafuso”? O primeiro contato que a governanta tem com um dos supostos fantasmas revela muito dos elementos que fomentam esse estado de paranóia construído pela necessidade de afeto:
“Tudo começou numa tarde, bem no meio da minha hora: as crianças estavam na cama e eu saíra para dar minha caminhada. Um dos pensamentos que, como não reluto nem um pouco em revelar agora, costumava acompanhar-me nesses passeios era o de que seria tão encantador quanto uma historia encantadora encontrar alguém de repente. Alguém apareceria na curva de uma alameda e pôr-se-ia diante de mim, sorriria e demonstraria sua aprovação.”
Em seu momento de lazer ela sonha encontrar alguém em seu caminho, alguém com quem possa dividir suas experiências e seus sentimentos. A casa ficava em uma região afastada, cercada por bosques, seria muito difícil encontrar alguém simplesmente vagando por ali. Essa certeza massacrava seu desejo, pois entre o desejo e o mundo existe a realidade. Seu sonho de encontrar alguém tinha a imagem de uma figura afetuosa, mas o que ela viu naquele dia foi o pesadelo de uma figura assombrosa em uma das torres da propriedade. Esse pesadelo foi se tornando cada vez mais apreensivo à medida que as aparições foram aumentando e a história do passado da própria residência, ou melhor dizendo, das pessoas que moravam lá, foram sendo desvendados pela governanta. Sua paranóia se intensifica com o enredo.
Imagine um ponto preto no centro de uma tela branca. Se a tela tiver sua área reduzida o ponto ocupará mais espaço no seu interior ainda que seu tamanho não se altere. Esse exemplo é muito utilizado nas artes visuais para exemplificar que qualquer forma de percepção visual se altera de acordo com as modificações do espaço que delimita essa percepção. Através da transposição deste conceito do campo das artes visuais para a literatura torna-se possível compreender a influência do enredo sobre a psicologia dos próprios personagens. O enredo, como moldura, circunscreve o contexto e a percepção desse contexto ocorre pelos personagens por meio de sua própria consciência.
Em determinado momento a evolução do processo de paranóia chega a expor o senso de vulnerabilidade da própria governanta que atribui significados arbitrários aos acontecimentos e passa a estabelecer uma relação de causa e efeito. Ela chega a se convencer de que os espíritos dos antigos empregados possuem maior domínio sobre as crianças do que ela própria.
Trata-se de uma historia fácil de ser resumida, mas difícil de ser comentada sem recorrer a spoilers. Para não quebrar o interesse do leitor pela obra me limitarei apenas ao que já disse ate aqui. Para terminar posso dizer apenas que quem se propuser a ler está estranha obra de Henry James, com a atenção necessária para compreender o seu significado, vai se surpreender com uma história de fantasmas onde os vivos são infinitamente mais assustadores que os mortos.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
A OUTRA VOLTA DO PARAFUSO
Autor: JAMES, HENRY
Tradutor: BRITTO, PAULO HENRIQUES
Editora: PENGUIN COMPANHIA
Nº de Páginas: 200

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