“(...) há um ponto em que os infortunados e os infames se misturam e se confundem numa palavra, fatal palavra: são os miseráveis.”
– Victor Hugo.
No dia 17 de outubro de 2009 - como de costume - entrei em uma livraria aqui na cidade de Belo Horizonte a procura de uma boa obra. Infelizmente eu não contava com uma quantia apreciável de dinheiro de modo que minhas escolhas ficaram um tanto limitadas. Percorrendo as estantes dos esteticamente admirados livros de bolso me deparei com uma obra do escritor francês Victor Hugo chamada
Os Miseráveis. Eu já havia lido um breve resumo da obra, mas nada que houvesse me apresentado ao menos uma fração de sua grandeza. Diante de poucas opções, considerando meu potencial aquisitivo do momento e atraído pela belíssima pintura de Eugene Delacroix da capa, acabei comprando.
Dois meses depois eu havia terminado de ler as mais de mil e novecentas paginas do romance. Minha opinião sobre a obra foi tão positiva que logo no mês seguinte adquiri uma edição de luxo de Os Miseráveis, em capa dura e com uma tradução mais refinada. Imediatamente mergulhei na releitura. Ao terminar já podia afirmava com absoluta certeza: trata-se da melhor obra literária que já li na vida!
O livro não provocou apenas a minha admiração, mas abalou-me completamente de um modo como eu jamais julgaria ser possível. Naquela altura, Dostoievski já figurava como meu escritor preferido e eu já havia me rendido a sua maestria depois de ler clássicos como
Os Irmãos Karamazov,
Crime e Castigo e
Os Demônios, no entanto, o romantismo de Victor Hugo me comoveu a um nível equiparável ao realismo do gênio russo.
O CRIADOR
Em junho de 1848 as ruas de Paris estavam tomadas pelas barricadas. As tropas do General Cavaignac (1802-1857) reprimiam a revolta por meio de intensos e dramáticos combates nas estreitas e fétidas ruas dos bairros operários. Cerca de 50 mil parisienses armados e furiosos se ergueram contra as maquinações da Assembléia Constituinte, cada vez mais oposta à classe operaria. Em meio à anarquia das ruas um acontecimento singular, e quase cinematográfico, teve lugar em uma apagada rua da capital parisiense: uma casa foi invadida e pilhada por uma multidão. No escritório da residência um homem, chamado Gobert, encontrou as paginas manuscritas de um romance inconcluso. Na parte superior da pagina inicial estava escrito
“Les Miserables”.
QUADRO DE EUGENE DELACROIX TERIA SIDO INSPIRADO NA OBRA DE VICTOR HUGO
A casa em questão era a residência do poeta Victor Hugo e o manuscrito sobre a mesa se tornaria uma das mais belas obras da literatura universal, um marco no movimento romântico fruto do olhar humano que ousou enxergar a historia de centenas de miseráveis anônimos vivendo em uma sociedade que andava de braços dados com a desumanidade.
A vocação literária de Victor Marie Hugo aflorou bem cedo o que lhe trouxe reconhecimento precoce no meio acadêmico e confrontos familiares: seu pai, um general do exercito napoleônico, esperava que seu filho seguisse uma carreira mais solida que as letras. Ao longo de sua vida o escritor enfrentou a miséria na juventude, a morte de sua esposa e de sua amante, enfrentou a perda de seus filhos, sofreu exílio político, testemunhou a loucura final de seu irmão em meio ao rebuliço político francês característico do século XIX. Sua vida foi como a de seus personagens: intensa e cercada por adversidades. Sua obra foi o retrato da sociedade em que viveu e sua mensagem foi o eco da manifestação dolorosa sentida por milhares de anônimos subjugados pela mais terrível chaga social: a miséria.
A TESE SOCIAL DE OS MISERAVEIS
A interface de similaridades entre ficção e realidade se expressa mais claramente quando a ficção se baseia numa ampla realidade social e não em uma particularidade individual. Partindo desta premissa a certeza que se estabelece é que muitas obras literárias auxiliam na compreensão da sociedade na medida em que o quadro social do período em que a historia se passa torna-se o traço recorrente do autor ao longo de sua narrativa. Seja na escola romântica ou na realista o fato é que a literatura melhora nossa percepção diante dos fatos, uma vez que o retrato social é apresentado de forma atrativa, dispensando a frieza maçante dos textos de caráter mais denotativo.
Existe, obviamente, um imenso volume de obras cujo foco é a sociedade do século XIX. Quase todas as grandes obras imortais da literatura focam sua narrativa neste período, porem, nenhuma obra romântica aborda a pobreza e a miséria de forma tão magistral quanto Os Miseráveis de Victor Hugo. É impressionante que uma obra indescritivelmente bela tenha por moldura algo tão horrível como a miséria. Talvez esse paradoxo artístico possa ser explicado por uma frase do próprio escritor francês: “não seria a primeira vez que o esterco ajudaria a primavera a produzir uma flor.” Os extremos nascem do confronto entre antagonistas, de modo que algo tão belo não poderia ter surgido de algo que não fosse diametralmente oposto ao circulo da dialetica que delimita a sociedade.
A obra é tão grandiosa que se torna impossível produzir um resumo que não exclua aspectos relevantes. O objetivo deste texto não é realizar um resumo da obra, embora em alguns momentos possa parecer o contrario. Meu propósito é debater a grandiosidade do texto ficcional tanto no seu plano artístico como no plano social. Arte e sociedade, dois tópicos aparentemente imiscíveis entre si, então intrinsecamente relacionados uma vez que a primeira é a projeção da segunda.
Os Miseráveis não se resume a um produto literário típico da terceira fase do movimento romântico. A obra é um retrato daquilo que vemos e convenientemente ignoramos todos os dias; é tudo aquilo que admiramos na juventude e que a amargura inerente a vida adulta se encarrega de sufocar em nome do que chamamos de “maturidade”. Poucos escritores têm a capacidade de adicionar cores tão vivas à triste escuridão da realidade, de transformar o repugnante no belo, de transportar o lamentável para o campo da admiração. Dentre os poucos “artistas da miséria” que demonstrem o talento do escritor francês é possível citar Charles Dickens que com obras como
Um Conto de Natal,
Oliver Twist e
Grandes Esperanças consegue retratar a mesma marginalização humana, disfarçada com “efeito colateral do progresso”, de forma igualmente admirável.
Apesar de ser uma obra do século XIX seu tema é bastante atual: em vários momentos a narrativa deixa o campo da literatura romântica e parte para uma analise social profunda, deixando de lado a frieza das estatísticas e se concentrando na situação enfrentada pelos miseráveis da velha Paris e das cidades do interior. O processo de industrialização que tomou forma nos séculos XVIII e XIX fez das grandes cidades um atrativo para a massa de camponeses vivendo em condições rurais desumanas. O êxodo rural em direção aos aglomerados industriais urbanos inflou a massa de assalariados submetidos a extensas jornadas e salários muito inferiores a uma condição de subsistência básica; diante de tal situação a expansão da miséria seria um resultado lógico. As condições sociais expostas pelo autor são basicamente as mesmas encontradas nos dias de hoje. Os tempos eram outros, mas os erros são os mesmos!
É claro que uma obra que explora a triste realidade de milhões de anônimos, seja nos séculos passados ou no atual, não poderia deixar de ser carregada de religiosidade e do sentimento cristão. Victor Hugo explora tanto o egoísmo vil da sociedade quanto o caráter de cada individuo que nela habita sem, no entanto, condicionar a formação de caráter pessoal ao comportamento da sociedade que o cerca.
O que torna Os Miseráveis uma obra singular é o fato de que nas suas mais de mil e oitocentas paginas a miséria e dissecada em suas diversas variáveis tendo como pano de fundo a belíssima, embora sangrenta, historia francesa; como se pode ver trata-se de uma obra que se sustenta sobre paradoxos. Victor Hugo não padece do mal que acomete muitos textos, onde o autor tenta a todo custo induzir a simpatia do leitor por seu personagem principal. Em Os Miseráveis os personagens falam por si mesmos e são tão bem construídos que a simpatia do leitor, por um ou outro, surge naturalmente. Esse é inclusive um dos pontos forte da obra, pois seu amplo número de personagens alimenta um eterno debate em torno da profundidade psicológica de cada um.
É impossível ler as mais de mil e oitocentas paginas da obra, fruto de quase trinta anos de trabalho do autor (Victor Hugo começou a escrever Os Miseráveis em 1824 e só terminou em 1853), sem se emocionar com o calvário de Jean Valjean, não se apaixonar pelo esperto Gavroche, compreender a postura aparentemente correta de Javert, sentir compaixão pela pobre Eponine e pela desafortunada Fantine, como não admirar a postura dos defensores das barricadas no belíssimo capitulo “As grandezas do desespero”. Como não imortalizar na memória personagens tão completos e dignos de serem imortalizados. E como não se encantar pela grandiosidade de caráter do bispo de Digne, Monsenhor Bienvenu.
Estruturalmente a obra se divide em cinco partes, ou cinco livros, na seguinte ordem:
Fantine;
Cosete;
Marius;
O idílio da Rua Plumet e a Epopéia da Rua Saint Denis;
Jean Valjean.
Cada parte possui seu clímax e nenhuma delas perde para as demais no quesito qualidade. O núcleo da obra se constrói nas duas primeiras partes (Fantine e Cosete) onde o fio narrativo gira em torno de três personagens: Jean Valjean, Javert e Fantine. Nestas duas partes iniciais Jean Valjean e Javert agem como protagonista e antagonista, Fantine surge como uma espécie de resultado do embate entre ambos, embora sua historia já houvesse sido construída pelo autor sem que os dois personagens principais tivessem exercido algum tipo de influência sobre ela.
COSETTE
Jean Valjean, o grande protagonista da obra, é inicialmente descrito como alguém mais próximo de um animal selvagem acuado e maltratado - de um lado pela brutalidade desproporcional da lei e do outro pelo desprezo da sociedade - do que de um homem. Ao final da obra o personagem emociona o leitor por sua grandeza em meio à tamanha adversidade; a partir daí se imortaliza como um ícone de fé, força e esperança. Jean Valjean teria nascido em uma família de camponeses pobres; bem cedo ele teria perdido o pai e a mãe, ficando sozinho com sua irmã e o bebê desta. Durante um inverno rigoroso Valjean não teria conseguido encontrar trabalho o que o levou a cometer seu crime: roubou um pão. Isso teria acontecido no ano de 1795, em plena Revolução Francesa, embora o período de glamour dos San-Cullotes já houvesse passado.
Em função do roubo foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados. Viu-se privado de sua liberdade e de seu nome, sendo chamado de número 24601. Valjean passaria 19 anos preso em função de inúmeras tentativas de fuga. Em uma passagem da obra Victor Hugo questiona a postura social de sua época:
“Pode a sociedade humana ter o direito de sacrificar seus membros, ora pela sua incompreensível imprevidência, ora pela sua impiedosa previdência acorrentado indefinidamente um homem entre essa falta e esse excesso, falta de trabalho e excesso de castigo?”
Certo de que seu crime era insignificante diante do tamanho da punição Jean Valjean condena a sociedade ao seu ódio. Aqui Victor Hugo expõe o julgamento dos homens ao crime, ao mesmo tempo em que o criminoso julga sua condenação; no primeiro caso o julgamento se baseia no ideal de justiça, no segundo é a ausência desta que é colocada sob questionamento.
“A cólera pode ser louca e inconsequente; pode a gente irritar-se sem motivo; mas a indignação só é possível quando se está de algum modo com a razão: Jean Valjean sentia-se indignado.”
Por trás do calvário do personagem principal se esconde a grande tese da obra: a de que um ato de misericórdia é capaz de regenerar a alma que aparentemente havia atingido o limite maximo de sua depravação. Valjean é o personagem que durante toda a narrativa nunca esteve livre; ao deixar a prisão permaneceu preso ao passado e a promessa de se tornar um novo homem, graças a uma atitude altruísta de um bispo chamado Charles François Bienvenu Myriel, que surge logo nas primeiras palavras que iniciam a obra. Em umas das mais belas passagens Victor Hugo descreve as dores da liberdade da consciência:
“A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentações; a fornalha dos sonhos, o antro das idéias de que temos vergonha: é o pandemônio dos sofrimentos, o campo de batalha das paixões. Experimentem, em certas horas, penetrar através da face lívida de um ser humano que reflete, olhar no seu intimo, observar sua alma e examinar essa escuridão. Ali sob aparente silencio, há combates de gigantes(...) Que coisa mais sombria é esse infinito que todo homem leva em si mesmo pelo qual desesperadamente mede os desejos de seu cérebro e as ações de sua vida.”
O tema mais recorrente no texto é a perseguição implacável do inspetor Javert a Jean Valjean. Obcecado por seu papel no cumprimento da lei, Javert se mantém no encalço de Valjean mesmo através dos anos. Nascido em uma prisão, Javert era filho de uma cartomante e de um condenado e assim como Jean Valjean julgou a sociedade por meio do prisma de sua própria existência. Para Javert a sociedade se dividia em apenas dois segmentos completamente opostos - algo compreensível quando se considera seu caráter de extremos - e igualmente distantes: o certo e o errado. Javert possuía sentimentos bons que eram corrompidos por seus exageros.
O que torna o personagem tão fascinante é o paradoxo das características que compõem o seu ser: impiedoso, humano, serio, recluso, excêntrico, humilde, austero, virtuoso, não possuía distrações, honesto. Javert valorizava mais os pensamentos que as emoções, importava-se mais em saber o que um homem pensava e negligenciava o que sentia; subjugava o emocional, que considerava um capricho da vaidade humana, em prol do racional; enfim, Javert é um retrato daquilo que somos: simultaneamente anjos e demônios, famintos insaciáveis, racionais quando nos convêm, simpáticos e antipáticos, corretos e incorretos, marginais e cidadãos ou simplesmente humanos, com todos os paradoxos que se escondem por traz desta palavra.
Apesar de tudo Javert era do ponto de vista moral um homem bom, embora seu comportamento nos leve a um julgamento fortemente negativo de sua figura. Neste ponto Victor Hugo entra em um campo filosófico muito explorado e que tem por propósito delimitar a definição de “bom” e “mau”, considerando todos os campos aplicáveis a esta adjetivação.
Neste ponto o debate sobre o caráter de Javert apresenta uma questão que só pode ser respondida quando não restam duvidas sobre determinada indagação, bastante polemica por sinal: o que de fato define alguém como bom? Seriam suas atitudes? Seriam somente suas atitudes? A moralidade de uma ação, aparentemente boa, tem muito mais relevância na definição do caráter. Uma ação pode ser boa, mas moralmente condenável. Todas essas considerações tornam a definição entre bem e mal muito mais complexas do que parece. Javert pode ser o antagonista da obra, mas não o seu maior vilão.
CENA DO MUSICAL DE 2012
Considerando-se a genialidade de Victor Hugo, e o papel de ambos os personagens (Valjean e Javert) na obra, seria essa relação fugitivo criminoso apenas a interação protagonista antagonista existente em todas as narrativas do gênero? Sei das possibilidades de me deixar levar rumo a deduções errôneas, porem, uma análise criteriosa da obra incitar a responder a pergunta de forma negativa. O autor parece querer mostrar como dois seres, muito semelhantes no que diz respeito a concepção que fazem da sociedade, podem alterar seus valores mediante ações altruístas e misericordiosas. A esperança é algo que ecoa por todas as paginas e no caso entre Valjean e Javert ela é o principal produto do autor: a esperança de que a mais depravada das almas pode ser regatada da escuridão decorrente do julgamento social.
No inicio da obra Javert e Valjean compartilham da mesma visão de mundo e da mesma miséria de sentimentos. No plano cognitivo ambos são muito semelhantes e determinados e é justamente neste ponto que a historia se bifurca colocando ambos em rumos opostos. Valjean não acreditava em justiça e muito menos em ações desinteressadas, no entanto, o encontro com o bispo de Myriel mudou sua forma de ver a sociedade e de se comportar nela. A mais pobre das almas foi salva por um simples ato de misericórdia. O mesmo não aconteceu com Javert!
Determinadas circunstancias são capazes de alimentar a esperança ou a incerteza. Dentre o amplo conjunto de variáveis capazes de produzir tais efeitos uma se destaca por sua singular capacidade de direcionar a ação no caminho da reflexão: o improvável.
Quando o improvável deixa o campo das possibilidades e se estabelece como realidade o julgamento individual se enfraquece diante da chuva de questionamentos impostos pela natureza humana. O personagem Javert, tão certo de sua postura como defensor da lei é levado ao suicídio quando o que julgava improvável acontece: passa a admirar um criminoso.
Toda atividade introspectiva possui uma lógica interna que obedece a padrões mentais bastante específicos. Quando essa lógica é quebrada a mente procura se reorganizar rapidamente gerando desorientação e respondendo com atitudes precipitadas e na maioria das vezes radicais. Não é minha intenção interpretar o inigualável romance de Victor Hugo sob o prisma Freudiano ou de análises psicológicas intermináveis e cansativas, mas existem questões que por sua constante evidência, pedem, se não respostas, ao menos convicções.
Em Os Miseráveis vemos uma sociedade ramificada entre a inveja e o desprezo, sentimentos que o autor usa para descrever a relação estabelecida entre três personagens ainda em tenra idade. Vários personagens são assolados não apenas pela miséria material, mas também pela miséria afetiva, infinitamente mais danosa ao caráter que a primeira. A pobre Eponine é uma personagem que embora não se destaque como os demais se torna imortal por seu destino trágico. Dotada de uma voz rouca, pele manchada pelo sol e vestindo trapos, Eponine é o retrato da sonhadora adolescentes que delega o sofrimento causado por sua condição social ao segundo plano, enquanto sofre de um amor mal correspondido pelo jovem Marius Pontmercy.
MARIUS E EPONINE
Marius Pontmercy era um estudante de direito, proveniente de uma família rica, mas que por um desentendimento com o avô havia passado a residir em uma hospedaria pobre, ganhando a vida com textos e traduções. Declarava-se um democrata-bonapartista e graças a sua amizade com Courfeyrac, Marius foi apresentado aos demais membros da sociedade ABC.
A sociedade de amigos do ABC (o nome é devido ao som produzido pela pronuncia das letras: abaissé, que em francês significa rebaixado ou humilhado) é formada por um grupo de estudantes que se reuniam no Café Musain. Todos eles filhos da Revolução Francesa segundo Victor Hugo: Enjolras Combeferre, Jean Prouvaire, Feuilly, Coufeyrac, Bahorel, Lesgle, Joly e Grantaire. Esse núcleo é responsável pelos acontecimentos que engrandecem imensamente a obra: a luta nas barricadas em junho de 1832. O capitulo “As grandezas do desespero”, presente na quarta parte do livro é um dos mais sublimes da literatura universal.
É notável a quantidade de traços biográficos do próprio Victor Hugo no personagem Marius. Seu desentendimento família, sua vida dura longe de casa – a descrição das penúrias sofridas por Marius são tão vivas que chegam a emocionar o leitor – são traços vividos pelo próprio Victor Hugo em sua juventude.
Na terceira parte do livro (Marius) o autor expande os limites da narrativa expondo o verdadeiro apelo social da obra. A partir daí cada personagem é construído de modo que represente um micro cosmos da sociedade pobre parisiense do século XIX. As grandes divagações associadas aos excessos descritivos do autor, presentes ao longo de toda a obra, se tornam mais presentes nesse ponto da narrativa. Essa descrição generosa, que para muitos leitores pode parecer enfadonho e cansativo, é fundamental para a construção dos personagens e da atmosfera da suja e violenta Paris do século XIX. O que alguns caracterizariam como narrativa prolixa é na verdade a essência da obra.
A caracterização dos meninos de Rua de Paris, que pode parecer redundante, é na verdade o prólogo de uma narrativa que se afunila até se concentrar num dos mais conhecidos personagens da obra, seja por seu destino trágico ou por sua personalidade cativante: Gavroche.
Apesar de dramática a historia de Gavroche mantêm o colorido e a velocidade inerentes aos primeiros anos de vida e representa o retrato da miséria infantil. O jovem morador de rua, que na verdade mora dentro de um enorme elefante de madeira abandonado em uma praça da cidade, cativa por sua postura diante da realidade. As constantes gírias usadas em demasia pelo personagem contribuem para criar uma identidade própria dos moradores de rua.
São inúmeros os personagens dentre os quais podem ser citados os inescrupulosos Thenardier, o Sr. Mabeuf a pequena Cossete, que envelhece na narrativa, atinge a idade adulta e se apaixona pelo jovem Marius, enfim, são imensas as possibilidades de abordagens acerca da obra, seja por sua estética, seja por sua mensagem social ou seja por seu conteúdo psicológico e religioso.
É quase inacreditável a capacidade humana de ignorar os infortúnios alheios. O retrato da miséria do século XIX é idêntico ao do século XXI. A teoria da mimese aristotélica parece ter se perdido no tempo. A arte imita a vida para que possamos enxergar nossos erros emoldurados pelo intelecto alheio, mas na enigmática historia social humana os sentimentos antagônicos prevalecem: nos emocionamos com o texto, mas com a realidade sentimos repulsa. Ao menos um leve traço humano se mantém vivo, pois ao relembrar nossa postura é o sentimento de vergonha que se estabelece.
A sociedade em que vivemos morre um pouco a cada dia, destrói um inocente a cada por do sol e como diria Victor Hugo “cada vez que o vento sopra arrasta mais sonhos dos homens que nuvens do céu”. Talvez a pobre Eponine fosse na verdade uma alegoria da sociedade humana, pois durante a implacável luta nas barricadas, Marius olha para a moribunda criatura que acabará de salvar sua vida é pergunta:
“o que esta fazendo ai?”. A resposta de Eponine é certamente o destino da nossa sociedade:
“morrendo!”.
AUTOR: TIAGO R. CARVALHO
TITULO: Os miseráveis
AUTOR: Victor Hugo
EDITORA: Cosac Naify, 2009
3º Edição
TRADUÇÃO: Frederico Ozanam pessoa de Barros
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