quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O PODER DO VERDE


Na mitologia egípcia Osíris – deus que representa a fertilidade, o renascimento e a vida, é reconhecido nos hieróglifos por uma de suas características mais evidentes: a cor verde. O verde sempre foi uma cor associada à vida, naturalmente responsável por invocar a imagem da natureza. No extremo oposto está o vermelho: cor símbolo da paixão, do pathos – palavra grega que significa sofrimento –, do amor, forma singular de obsessão por outra pessoa. Vermelho é a cor do sangue... vermelho é a cor da morte.
O leitor do presente texto não deve ter deixado de estranhar o fato de o titulo do texto está em desacordo com a imagem de um quadrado vermelho. Não se trata de daltonismo, mas de um simples experimento: se observar por alguns segundos, sem desviar o olhar, para a imagem acima e em seguida foca a visão em uma parede branca, assim que você começar a piscar verá diante de seus olhos o mesmo quadrado, porem com uma cor verde. Até aqui nada de assustador, trata-se apenas de um fenômeno desencadeado por cores complementares e perfeitamente explicado pela óptica. A experiência tola que descrevi acima serve para explicar uma reflexão filosófica que tive há algum tempo: a de que a imagem da vida é também a imagem da morte!
Aquele que por muito tempo permanece diante da imagem da morte começa a buscar, inconscientemente, a imagem da vida. Cirurgiões que passam horas olhando para o sangue vermelho de seus pacientes passam a sofrer distúrbios visuais e enxergar manchas verdes azuladas. É por isso que os lençóis e roupas usadas pelos médicos em salas de cirurgia são azuis ou, como na maioria dos casos, verdes. A dimensão subjetiva entre a cor que simboliza a vida e a cor que simboliza a morte parece ter profunda influência nos mecanismos que levaram o homem a associar ambas as cores aos extremos opostos que caracterizam a eterna contingência felicidade-tristeza. Criamos nossos próprios padrões de beleza, fazemos generalizações arbitrarias da realidade, retalhamos, reduzimos ou ampliamos os significados dessa mesma realidade obedecendo a mecanismos inconscientes que na maioria dos casos são incapazes de compreender seu papel num primeiro momento. A associação entre um fenômeno e o seu significado se opera de forma inconsciente.
Outra forma de expressão, puramente particular, que se constrói de forma inconsciente é a inspiração artística. Os maiores nomes das artes plásticas e da literatura que marcaram o século XIX construíram toda a sua filosofia criativa a partir de uma bebida famosa, cuja cor lhe renderia inúmeros apelidos como “musa dos olhos verdes” ou simplesmente “fada verde”. Trata-se do polemico absinto. Cinco da tarde era a chamada de “hora verde” pelos parisienses da belle epoque. Era exatamente nessa hora que o consumo de absinto atingia o auge dando inicio a rodada de prazeres que se estendia por toda a noite.
O poder do absinto se devia ao seu elevado teor alcoólico (70%) é a presença de uma substancia estimulante que provocava uma forma leve de alucinação: a Turjona. Seu nome vem do grego “apsinthion” que significa “intragável” devido ao gosto fortemente amargo. A Artemísia, planta utilizada em sua fabricação, era muito utilizada na antiguidade para combater febres, principalmente as provocadas pela Malaria – doença que assolou os egípcios nos tempos dos faraós. Uma ironia a parte, pois o chá de Artemísia empregado pelos egípcios possuía a mesma coloração verde de seu deus Osíris.
Na Roma antiga era comum dar aos vencedores das corridas de bigas uma infusão da erva de Artemísia para mostrar que a vitoria não ocorria sem certa dose de amargura. Aqui mais uma vez o caráter filosófico do absinto, e portanto do verde, reaparece: vitoria como resultado do sofrimento assim como a morte é resultado da vida.
Não se sabe ao certo quando o absinto, bebida como atualmente é conhecida, foi inventada. Acredita se que tenha sido criada no século XVIII por volta de 1792. Henri Louis Pernoud, famoso fabricante de bebidas, construiu uma fabrica para produção de absinto em Pontarlier, próximo a fronteira com a Suíça. Em 1896 a fabrica chegava a produzir 125 mil litros de absinto por dia. Em 1910 cerca de 36 milhões de litros de absinto foram consumidos em toda a França. Vale lembrar que o absinto francês do século XIX era infinitamente mais forte que o atual.
Os parisienses recorriam a inúmeras substâncias entorpecentes e ou alucinógenas. A morfina era muito utilizada pelas mulheres, o éter era um recurso mais barato para aqueles dispostos a embarcar numa forma única de transcendência química depois de uma breve cheirada. Em alguns locais era possível comprar morango em caldas de éter. Não é sem motivo que muitos incêndios provocados por vapores de éter ocorreram durante o século XIX.
O absinto contem grandes quantidades de Turjona, um terpeno tóxico que provoca convulsões decorrentes de uma super estimulação do sistema nervoso autônomo. O acido Gamma-aminobutirico é uma substancia que regula as transmissões entre as sinapses neurais e a Turjona, presente no absinto, inibe a ação do acido Gamma-aminobutirico provocando um aumento das transmissões sinápticas desencadeando tremores e excitação. Caso seja consumido associado a algum outro estimulante, como a Nicotina, o processo pode levar a contrações musculares e convulsões. O absinto já é classificado como Speedball - substancia formada pela combinação entre estimulante e entorpecente. A Turjona age como estimulante e o álcool como entorpecente. Curiosamente o álcool acaba impedindo que o consumidor ingira uma dose letal de Turjona.
Na mais famosa obra de Robert Louis Stevenson, “O medico e o monstro”, o Dr. Jekyll cria uma formula capaz de separar o bem do mal: sais brancos eram adicionados a uma substancia com odor de éter e aos poucos a mistura assumia uma coloração verde. Beber aquilo libertava sua alma do seu alter ego, representado pela figura do Sr. Hyde. Jekyll sentia uma necessidade incontrolável de permitir que os rugidos reprimidos de sua alma se libertassem. Edward Hyde, um demônio do inconsciente, lutava para se sobrepor a Jekyll, e este, fatigado pelo esforço de reprimir seu pólo pulsional, se rendia ao seu vicio.
Jekyll serve como exemplo literário para um fenômeno químico psicológico da modernidade: o dependente químico não se torna escravo de uma substância, mas da personalidade que esta mesma substancia produz. Um viciado em morfina se torna dependente do seu estado sob o efeito analgésico da droga, ou seja, da ausência da dor e não da substancia química em si. “Os poderes de Hyde pareciam haver crescido com a debilidade de Jekyll” – escreveu Stevenson em sua obra. De fato o vicio se torna mais intenso a medida que debilita sua vitima. Em alguns momentos a descrição de Jekyll de suas crise que antecediam as recaídas se assemelham ao delirium tremens observado em vitimas do alcoolismo:
“Fui acometido de uma vertigem, uma náusea horrível e um tremor mortal. Essas sensações passaram, me deixando a beira de um desmaio; depois, quando também a tonteira se dissipou, comecei a tomar consciência de uma mudança na natureza de meus pensamentos, uma maior audácia, em desprezo pelo perigo, uma dissolução dos laços do dever.”
Outro ponto levantado pela obra de Stevenson, embora de forma bastante sutil, e o do aspecto benéfico e ao mesmo tempo nocivo da química. A mesma substancia capaz de provocar dor também a alivia. A Heroína, por exemplo, é um dos mais poderosos anestésicos já produzidos pelo homem! Quem poderia imaginar que um remédio tão “heróico” se tornaria um “vilão”? Infelizmente, conforme já foi dito por Joe Schawarcz e reforçado no conto de Stevenson, as pessoas tendem a se concentrar nos aspectos negativos durante suas avaliações deixando de lado inúmeros aspectos benéficos. Os monstros nascem amparados por aqueles que diante da luz somente enxergam sombras.
Por que Stevenson descreveria a substancia criada por Jekyll como verde pálida? Seria uma referencia ao absinto? Seria apenas um adorno estético sem nenhum significado subjacente? Na época o verde era considerado uma cor estética, pois combinava com as cores que predominavam em meio a decoração da década de 1890. Seria o “sal branco” uma referência ao açúcar utilizado pelos adeptos do absinto? Aqui já embarcamos no terreno falho da conjectura da criação literária.
Voltando ao ponto inicialmente exposto no texto, isto é a relação entre vida e morte, fica claro que a vida urbana é plena de sensações para aqueles que se permitem embarcar em variados níveis de transcendência; o perigo, neste caso, é o principal combustível e o verde a mais inebriante das cores. Existe uma frase, utilizada em referencia ao absinto, que descreve perfeitamente o paradoxo da filosofia da vida como reflexo da morte: “mata, mas te faz viver”.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Para saber mais sobre a historia do absinto:
ABSINTO - UMA HISTORIA CULTURAL
Autor: BAKER, PHIL
Editora: NOVA ALEXANDRIA
Ano: 2010
Nº de Páginas: 228

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