“Eu penso que, se há em cada cabeça um juízo, haverá um tipo de amor para cada coração.”
- Ana Karênina
A estrutura escolhida por Tolstoi coloca em relevo as marcas que caracterizam o romance. Pode-se dizer que as tramas que ocorrem paralelamente possuem um ritmo intermitente bem pronunciado através de capítulos curtos e ágeis. Em um dado momento estamos lendo sobre as dificuldades da vida no campo e, subitamente, somos jogados em meio aos dilemas da sociedade urbana.
O principal tema do romance
“Ana Karênina” não me parece ser o adultério, mas a sociedade russa do final do século XIX, polarizada entre os costumes da alta sociedade e os do meio rural. O adultério, tema invocado logo nas primeiras paginas, se insere na trama como uma espécie de reflexo adversativo dos valores referentes à reciprocidade arcaica das relações familiares.
Apesar do titulo a obra possui três protagonistas – cuja importância no contexto se define a partir do ponto de vista do leitor. O fato de Tolstoi ter optado por nomear seu romance com o nome de um dos personagens parece remeter a importância que o autor atribui aos dilemas enfrentados por esse personagem. Diante desta premissa literária, aparentemente, temos a impressão de que a personagem de Ana teria como objetivo fazer coro aos valores cristão na imagem do pecador que sofre por violar os mandamentos superiores.
Encarar as mais de 400 paginas do romance com essa idéia pré concebida certamente resultará numa compreensão pobre: a de que o livro conta a história de uma mulher que comete adultério e que em função disso passa a ser julgada pela sociedade.
Tolstoi, como um dos grandes representantes da literatura russa, famosa por sua profundidade psicológica e por personagens construídos em três dimensões – físico, psicológico e religioso – vai muito além da impressão inicial. Em
Ana Karênina, Tolstoi se iguala a Shakespeare ao mostrar que a tragédia humana nasce sob o amparo de seus desejos e de suas escolhas motivadas pelos sentidos.
Confesso que durante a leitura não senti empatia pela personagem de Ana. Suas falhas como esposa foram, ate certo ponto, compreensíveis dada à tendência de Aleksei (seu marido) de agir como um ser sobre-humano.
O que mais destrói o apego do leitor pela personagem e a sua tendência insuportável de incorporar a imagem da figura trágica. A altiva e impulsiva Ana aos poucos sede espaço para uma mulher chorona, viciada em morfina e que a todo custo busca justificar seu comportamento obsessivo a partir do comportamento alheio.
Diametralmente oposto a Ana está Levin, talvez o mais fascinante personagem da obra. As leis do desenvolvimento estariam presentes nas relações de dependência entre o homem e o meio ambiente? Essa pode parecer uma pergunta bastante atual, no entanto, ela é o núcleo da obra escrita por Levin que ao buscar as relações de dependência entre homem e natureza acabou colocando a sociedade agrária russa do final do século XIX como a questão central do desenvolvimento industrial do século posterior.
Outro gênio da literatura russa que adotou um olhar semelhante sobre a sociedade agrícola de seu país foi Anton Tchékhov. Posso dizer que me encantei pela prosa de Tchékhov. Eu ainda não havia tido o prazer de mergulhar em sua obra até que recentemente li
“O jardim das Cerejeiras”, sua ultima e mais famosa peça.
Escolhida para ser representada pelo Teatro de Artes de Moscou logo após a noticia da vitoria sobre a Alemanha Nazista, em maio de 1945, a peça consistia num marco simbólico da historia russa. Misteriosamente ela possui um forte componente transicional, uma autêntica introdução artística a mudanças sociais e políticas: foi a ultima peça a ser encenada em São Petersburgo antes da tomada do poder pelos Bolcheviques.
Trata-se de uma peça curta, de quatro atos, que mantém uma linguagem absurdamente cômica até a mudança para um tom mais dramático no final. A história gira em torno de uma família da decadente aristocracia russa cujo drama se constrói a partir da venda da propriedade onde está o outrora produtivo jardim das cerejeiras. Logo no inicio percebemos o uso metafórico do jardim como retrato do passado rural da sociedade russa. A nostalgia desencadeada pela proximidade do leilão retrata o sentimento dominante entre as tradicionais famílias aristocráticas diante das incertezas trazidas pelo século que se descortinava. Retrato de seu tempo o jardim simboliza um passado cujos moldes não se encaixavam dentro da nova realidade.
“O jardim das cerejeiras” marca o fim da carreira de Tchékhov e também o fim de uma longa era da historia russa ligada ao campo. As sombras em meios aos pés de cerejeira contrastam com a beleza contemplativa e ao mesmo tempo condenada ao esquecimento. O lugar que tantas lembranças guardava se encontrava diante daquela forma de morte que acomete os despossuídos de alma: o esquecimento.
Tolstoi e Tchékhov construíram obras de inigualável grandiosidade e cuja mensagem é bastante clara: Quando deixamos para traz o passado algo de belo se perde. A natureza tem seus métodos de deixar sua marca. O jardim, segundo Tchékhov, ou o campo, segundo Tolstoi, é o coração do homem: assolado pelos ventos e inconstante devido às mudanças provocadas pelo tempo. Possui uma beleza enraizada no solo fértil da esperança da primavera. É generoso com aqueles que se dedicam ao seu cultivo. O passado que se oculta as sombras de suas arvores às vezes parece morto como folhas secas e às vezes doce como uma cereja.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
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