Gigantesca campanha de Napoleão na Rússia foi marcada por um calor intenso na fase inicial e por armas que tinham apenas 5% de chance de acertar o alvo.
Existem mais livros escritos sobre Napoleão Bonaparte do que sobre qualquer outra personalidade. Então por que ler mais um livro sobre seus feitos? Como diria Dostoievski
“não existe um assunto tão velho no qual não se possa falar algo novo sobre ele.” Em uma obra espetacularmente bem escrita o historiador Adam Zamoyski, que também é autor de
“Ritos de Paz a queda de Napoleão e o congresso de Viena”, retratou um dos mais trágicos capítulos das guerras napoleônicas: a invasão da Rússia em 1812.
A narrativa se inicia na manha de 20 de março de 1811: depois de atravessar a noite em trabalho de parto a jovem e exausta imperatriz Marie Luise havia finalmente havia dado à luz a um menino. Cem tiros de canhão troaram por Paris anunciando o nascimento do menino. Gritos de
“vive l’Empereur!” percorriam as ruas; Paris estava em festa e o império napoleônico encontrava-se em sua plenitude. Aos poucos o clima festivo das primeiras paginas vai se transfigurando numa tensão política provocada pelas conseqüências do Bloqueio Continental – estratégia criada por Napoleão cujo objetivo era a destruição econômica de seu velho inimigo: o império britânico.
O Czar Alexandre, herdeiro do império edificado cem anos antes pela política inflexível de sua avó Catarina, a Grande, se encontrava numa difícil posição: manter seus portos fechados para os navios ingleses era o mesmo que aumentar o descontentamento da aristocracia russa, restrita a produção ineficiente da indústria nacional. Abrir os portos ao comercio significava entrar em guerra com a França.
Para quem gosta de temas voltados a política externa o capitulo “A guinada para a guerra” é um prato cheio, um autentico mergulho nos bastidores políticos que arrastariam as duas nações para o conflito. Napoleão, consciente da deterioração diplomática entre os dois países, buscou induzir Alexandre a romper o bloqueio para que este fosse visto como o agressor. Em 31 de dezembro o Czar abriu oficialmente seus portos aos navios americanos e no verão de 1811 já circulavam os boatos de que tropas russas começavam a se agrupar nas fronteiras. Era o sinal que Napoleão tanto aguardava para mobilizar suas tropas.
Para os mais supersticiosos o sinal veio como um cometa, visível a olho nu, que riscou os céus da Europa na noite de 25 de março de 1811. No contexto de uma gigantesca guerra iminente um simples fenômeno astrológico assumiu contornos de uma profecia: a carnificina estava prestes a começar.
Zamoyski expõe um retrato menos conhecido sobre a campanha de 1812 e derruba velhos mitos. Um deles é de que a retirada do exercito russo seria uma estratégia para desgastar o exercito francês. O autor mostra que no momento da invasão as forças russas estavam distribuídas em três exércitos dispersos ao longo da fronteira. A estratégia consistia em recuar para que os exércitos pudessem se agrupar em uma posição vantajosa onde sua superioridade numérica fosse capaz de fazer frente aos franceses. Portanto, o recuo não foi uma estratégia, mas uma necessidade.
Um segundo ponto no qual o autor abre espaço para questionamentos é sobre o papel do inverno russo na derrota dos franceses. Para Zamoyski - que não se apega apenas a opiniões particulares e expõe seus argumentos através de fatos - o calor das primeiras semanas da invasão foi mais determinante para a derrota do que o lendário inverno russo. Antes mesmo de chegar a Smolensk, primeira cidade relativamente grande antes de Moscou, o exercito de Napoleão, que inicialmente contava com uma força aproximada de 600 mil homens, já havia sido reduzido a uma força de 160 mil soldados. As baixas ao longo do caminho foram causadas pelo desgaste imposto pelas marchas forçadas sob o calor:“Os soldados vestfalianos sucumbiam aos montes pelo calor. Ao final de uma marcha forçada a uma temperatura superior a 32°C, um regimento de 1.980 homens foi reduzido a 210.”
Marchando em um ritmo de 76 passos por minuto os soldados cobriam uma extensão de 15 a 35 quilômetros por dia. Era comum ver soldados largar suas formações e correr para as margens da estrada arriando as calças e sofrendo de dores intensas.
O sofrimento da cavalaria foi retratado com brutal realismo no texto: das costas dos cavalos escorria o pus que se acumulava sobre as assaduras criadas pelas celas dos soldados. Os pobres animais exaustos e enfurecidos pela sede muitas vezes tombavam para não mais se levantar.
Vespas furiosas por causa do calor se acumulavam aos montes sobre os homens encharcados de suor e cobertos pela poeira amarela que subia das estradas de terra. Um dos piores flagelos, no entanto, era a sede:
“Quantas vezes eu não me atirei com meu estomago na estrada para beber do rastro dos cavalos um liquido cuja cor amarelada deixa meu estomago enjoado até hoje.” Contou um dos soldados obrigados a beber urina de cavalo. Em 14 de agosto Napoleão e seus soldados começam a percorrer a famosa estrada Minsk-Smolensk. Construída por Catarina, a Grande, seria esta a estrada que guardaria as maiores lendas e as maiores tragédia de toda a campanha.
O primeiro grande momento da obra é a descrição da batalha de Smolensk. O impressionante bombardeio da artilharia francesa contra as muralhas é descrito em detalhes, bem como a terrível luta em meio a ruas enegrecidas pelos incêndios que tomou conta da cidade após a entrada das tropas de Napoleão.
Borodino é o segundo grande momento: os preparativos de ambos os lados para a gigantesca batalha – uma das maiores na historia das guerras – são minuciosamente descritas pelo autor que cria uma tensão natural quanto aos acontecimentos. A ferocidade dos combates e a descrição quase poética do campo de batalha ao entardecer, coberto de balas de chumbo e por corpos desfigurados de russos e franceses, fazem da batalha de Borodino um dos momentos mais intensos do texto.
O terceiro grande marco do texto é o incêndio de Moscou, episodio que marca o inicio da passividade de Napoleão. O imperador perdeu cinco preciosas semanas nas ruínas enegrecidas da cidade tentando arrancar do czar um acordo de paz. A essa altura seu gigantesco exercito de aproximadamente 600 mil homens estava reduzido a uma força efetiva de apenas 90 mil. Quando Napoleão finalmente decidiu retornar é que os primeiros traços do rigoroso inverno começaram a surgir.
Da metade da obra em diante acompanhamos a deterioração final dos exércitos franceses em sua marcha de volta pela estrada Minsk-Smolensk – a mesma utilizada no verão anterior. Daí em diante enfrentariam seus maiores pesadelos e o primeiro deles veio na forma de uma intensa chuva que despencou no dia 22 de outubro e transformou as estradas em um mar de lama. Carroças atulhadas de itens e farinha retirados de Moscou tiveram de ser deixados para trás semi afundadas na lama. A partir daquela data a sobrevivência de cada um dependeria do que fosse capaz de carregar.
O maior golpe moral, no entanto, ocorreu seis dias depois quando os soldados passaram novamente pelo campo de batalha de Borodino e se depararam com os corpos dos companheiros que haviam morrido durante a batalha, todos inchados por causa do calor e desfigurados pelos insetos que os devoravam.
1812 retoma a proposta de muitas obras anteriores em querer mostra que a campanha de Napoleão foi assolada por uma serie de adversidades desde o seu inicio. O esgotamento do exercito francês teve origem principalmente nas falhas logísticas quanto ao abastecimento das tropas.
O sistema de abastecimento de Napoleão dependia de 9.336 carroças que demandavam a força de 32.500 cavalos. Nas péssimas estradas da Rússia a movimentação das carroças não funcionou como deveria e para piorar não havia comida para os cavalos.
Segundo o autor um dos maiores erros de Napoleão foi colocar uma cavalaria de 40 mil homens a frente de sua ofensiva como ponta de lança. Ele não apenas desconsiderou a dificuldade para manter a alimentação de 40 mil homens e igual numero de cavalos como também estendeu muito suas linhas de abastecimento. Curiosamente o ponto mais frágil de seu exercito estava na retaguarda.
Zamoyski preenche dezenas de paginas com um retrato vivo da grand arme descrevendo os uniformes, os armamentos, a logística, os tipos de munição utilizadas nos canhões e até sobre a alimentação diária dos soldados: 550g de biscoitos, 30g de arroz, 60g de vegetais desidratados, 240g de carne ou banha de porco, vinho e um pouco de vinagre.
Em muitos casos o perigo real não eram as tropas inimigas, mas o próprio equipamento dos soldados. O mosquete utilizado pelos franceses era uma arma que praticamente não havia sofrido nenhuma inovação no ultimo século.
“Para carregá-lo, o soldado usava um cartucho que nada mais era que um cilindro de papel contendo uma porção de pólvora e um projétil; ele mordia a ponta do cartucho, segurando o projétil com a boca, salpicava um pouco de pólvora no tambor e o fechava; depois, colocava o restante da pólvora no cano com a vareta. Um soldado treinado era capaz de recarregar a arma e se preparar para atirar em um minuto e meio.”
O tiro não possuía precisão alguma, e a nove metros de distancia do seu alvo um soldado tinha apenas 5% de chance de acertar, por isso os soldados marchavam em linhas compactas durante as batalhas, dessa forma os disparos sincronizados cobriam seu alvo com uma muralha de projeteis de chumbo. Após aproximadamente 12 disparos os detritos da pólvora obstruíam o cano e a arma corria o serio risco de explodir no rosto do seu manuseador. Em batalhas longas como Borodino, por exemplo, as baionetas assumiram o papel de arma principal embora cerca de 1.400.000 disparos de mosquetes tenham sido efetuados pelos franceses durante a batalha.
As batalhas mais intensas durante a retirada ocorreram na segunda semana de novembro entre as cidades de Smolensk e Ladi. Miloradovich e Kutuzov fizeram varias tentativas de separar e destruir os exaustos invasores. A descrição da tentativa de bloqueio da estrada em 2 de novembro pelos russos da inicio a uma serie de narrativas sobre os furiosos combates que ocorreram ao longo da estrada.
A retaguarda de Napoleão, formada pelas tropas dos generais Davout e Ney, foram especialmente fustigados pelos canhões da artilharia russa. Somente em 6 de novembro o inverno russo finalmente mostrou sua força:
“Aquele dia permaneceria gravado na minha memória. Depois de termos atravessado o Dorogobuzh, começou a cair uma chuva muito forte, e comecei a sentir frio; a chuva deu lugar a neve, e em muito pouco tempo o chão estava coberto por mais de meio metro de neve” – contou um soldado francês.
A caótica travessia do Berezina marca o fim da campanha, mas não do texto em cujas ultimas paginas esta um interessante estudos sobre as baixas sofridas por Napoleão e as conseqüências de sua desastrosa campanha para os anos posteriores.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
1812 - A MARCHA FATAL DE NAPOLEAO RUMO A MOSCOU
Autor: ZAMOYSKI, ADAM
Tradutor: OLIVEIRA, ANDREA GOTTLIEB
Editora: RECORD
Ano: 2013
Encadernação: BROCHURA
Nº de Páginas: 630
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