quinta-feira, 3 de abril de 2014

BRASIL 1964 - A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO TOTALITARISMO -

“A verdade é que em cada um de nos, bem no fundo existe uma pequena dose de totalitarismo. É a luz estimulante da confiança e da segurança que mantém esse gênio do mal submerso (...) se desaparecerem a confiança e a segurança, não pensem que ele não estará esperando para substituí-la.”
-George F. Kenna
Pode-se questionar até que ponto o regime democrático, sempre vulnerável na medida em que mantém a livre expressão de pensamentos divergentes, está sujeito as reviravoltas políticas ditadas pelo medo ou pelos interesses de uma classe dominante. Nessa disputa quase sempre vemos o surgimento de seu equivalente antagônico, ou seja, o regime totalitário. Embora o totalitarismo seja um fenômeno político associado ao século XX, suas raízes são evidentemente muito mais antigas. Platão, por exemplo, criticou a democracia em sua obra “República” por considerar que o povo não era suficientemente instruído na arte da “ciência política”.
Dentro do contexto da historia de nosso país o período compreendido entre 1964 e 1985, os chamados “anos de chumbo”, ficou marcado por uma oposição quase patológica entre duas doutrinas políticas opostas que se digladiaram como um produto das massas. Diante dessa interpretação dos fatos históricos surge uma indagação: seria o golpe de 1964 um movimento predominantemente militar? A violência política é na maioria dos casos uma resposta para o medo. Novas reivindicações invariavelmente remetem a novas posturas o que cria a falsa ideia de desordem, baderna ou anarquia, na medida em que rompem com os valores éticos cosolidados ao longo dos anos. É justamente esse predomínio do imprevisível que motiva a ação por parte da ala mais conservadora da sociedade. O anticomunismo da direita política praticamente determinou uma postura de confundir o medo legitimo com aquele fabricado nos moldes da Guerra Fria, que pintava a imagem de regimes democráticos encurralados pelo “perigo vermelho”. Esse é um dos motivos que levam a concluir que o golpe militar de 1964 não foi apenas um movimento militar, mas também civil. Basta considerar que as bases teóricas do governo de exceção foram o resgate de valores políticos e sociais tidos como inalienáveis pela elite burguesa e sempre reafirmados pela doutrina militar graças a sua inflexibilidade clássica.
A ideologia socialista ganhou espaço entre os intelectuais Brasileiros graças a um recorde negativo de nosso país: o Brasil sempre foi um exemplo histórico e expressivo de desigualdade social. O terceiro mundo passou a enxergar seu verdadeiro potencial revolucionário a partir da experiência cubana que passou a ditar um modelo radical de reforma social cujos resultados, ainda que infinitamente distantes do ideal de “paraíso do proletariado”, se mostravam aparentemente mais atrativo que o velho e resistente capitalismo, solapado pelo ceticismo global em relação à política norte americana – amparo natural do livre mercado. Boa parte dos integrantes da esquerda política foram moldados pelas reformas do populista Getulio Vargas (1883-1954) cuja base de governo se assentava sobre a mais intensa força política do século XX: o nacionalismo.
Em março de 1964 o Brasil era um barril de pólvora prestes a explodir e seria justamente a postura inovadora com que João Goular resolveu encarar a crise agrária - cuja proposta invariavelmente levaria a uma crise na relação entre os donos da terra e os que a cultivavam - a principal responsável pela centelha detonadora para o golpe. Seriam 21 anos de vergonhosos abusos e falso moralismo. Nem mesmo os êxitos econômicos assombrosos, como o aumento de 10% do PIB – uma façanha somente equiparável aos crescimentos da Alemanha e do Japão pós-guerra – seriam suficientes para apagar a vergonha de um passado cor de chumbo.
A política de linha dura, motivada pelas guerrilhas, começou a ruir a partir do momento em que o governo militar atraiu para si um elevado nível de atenção hostil devido à tentativa de impor uma forma de moral civil construída pela necessidade política e não pelos costumes. Essa proposta absurda trazia em si mesma o fracasso como resultado obvio, pois as ações humanas não possuem a moral como regra única. O comportamento prático é muitas vezes adotado mediante situações onde as convicções particulares não encontram um campo favorável a sua influência. Esse comportamento prático é analisado como objeto de reflexão onde a prática-moral se transforma em teoria-moral. Esse julgamento mental realizado a posteriori, e a revelia das normas sociais, está intimamente relacionado à filosofia de cada individuo e consequentemente se torna incompatível com uma padronização arbitraria. Diante desse obstáculo cognitivo o regime relaxou sua garras e em 1985, para o bem de todos e felicidade geral da nação, deixou de existir. Apesar de ser um evento recente de nossa historia o período do governo militar ainda é pouco compreendido e sua real dimensão escapa da compreensão de boa parcela da sociedade, sobretudo da mais jovem. Centenas de obras sobre o tema preenchem as prateleiras das livrarias, mas poucas conseguem retratar o período em questão com tamanha maestria do que as obras do jornalista Elio Gaspari.
No ano de 1984, o jornalista Elio Gaspari se propôs a tarefa de escrever um ensaio, de não mais que cem paginas, sobre a relação entre Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva e a posterior ascensão de ambos ao poder no ano de 1974 - como presidente da República e Chefe da Casa Civil respectivamente. Contando com uma bolsa de estudos de três meses no Center for International Scholars e ao acesso a Biblioteca do Congresso Americano em Washington, Gaspari esperava concluir rapidamente seu trabalho, cujo titulo seria “Geisel e Golbery, o sacerdote e o feiticeiro”. Cerca de trinta paginas já haviam sido redigidas, e seu objetivo era explicar porque Geisel e Golbery desmantelaram a estrutura da ditadura militar, entre os anos de 1974 e 1979, se ambos haviam tido ativa participação na sua formação entre 1964 e 1967. Mergulhado em documentos oficiais e relatos de civis e militares, Gapari levaria dezoito anos para transformar sua proposta inicial em uma magistral serie de quatro livros que cobrem um dos períodos mais negros e lamentáveis da história de nosso país: os chamados “Anos de Chumbo”.
No primeiro volume, “A ditadura envergonhada”, o autor revela os bastidores da luta pelo poder que levaram ao golpe militar de março de 1964 até a criação do famigerado Ato Institucional número 5. O texto simples e direto parece dialogar com o leitor expondo o quadro caótico dos momentos finais do governo de Joáo Goular, que com seu anuncio de “reformas de base” havia apavorado a ala conservadora da sociedade fazendo deslocar uma serie de atitudes, boa parte delas de improviso, e cujas consequências seriam sentidas pelos próximos 21 anos. A participação do governo americano por traz do golpe militar, motivado pela crença de que “Jango” seria uma espécie de fantoche nas mãos dos comunistas, aparece logo na primeira parte da obra atraves de transcrições de conversas confidenciais, gravadas no salão oval da Casa Branca, entre o então presidente americano J. F. Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon. Essa intromissão norte americana nos assuntos relacionados à America latina – um exemplo claro de que no mundo globalizado os assuntos relativos às políticas domesticas e externas se inter-relacionam de forma intrínseca – no contexto de um mundo em plena guerra fria, onde o maniqueísmo típico do século XX, reafirmado pela polarização entre o leste socialista e o oeste capitalista, só aumentam a tensão narrativa das primeiras paginas.
Ao longo das mais de 400 paginas, cujo texto em alguns momentos pode parecer um pouco confuso, vemos os bastidores da operação “Brother Sam”, a fuga de “Jango”, a criação da SNI (Serviço Nacional de Informações), a decretação dos primeiros atos institucionais, a repressão aos núcleos estudantis e o inicio das praticas de tortura. “Agora vamos dar a vocês uma demonstração do que se faz clandestinamente no país”, teria dito um tenente de 27 anos a um grupo de estudantes pouco antes de serem torturados. Lentamente vemos o clima de otimismo da década de 50 desmoronar nas incertezas da década de 60. O governo começara a mostrar suas garras e poucos podiam imaginar que o pesadelo da repressão estava apenas começando.
POR TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Coleção: AS ILUSOES ARMADAS
Autor: GASPARI, ELIO
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
Número de páginas: 424

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seguidores