“(...) ficava em uma janela das Tulherias, observando as carroças fazer seu percurso de morte; às vezes às seguia ate o final do trajeto e misturava-se a multidão. Ouviu falar de esposas que denunciavam seus maridos ao Tribunal, e maridos que denunciavam as esposas; mães que ofereciam os filhos à justiça Nacional e filhos que traíam os pais. Viu mulheres com bebes recém-nascidos amamentando até a carroça chegar. Viu homens e mulheres escorregarem e caírem sobre o sangue derramado de seus amigos, e os carrascos erguerem-nos pelos braços amarrados. Viu cabeças pingando sangue serem levantadas para a multidão olhar.
- Por que você se força a ver essas coisas? – alguém lhe perguntou.
- Estou aprendendo a morrer.”
- Herault de Séchelles
“Você acha que lealdade é encobrir os fatos, fingir que a razão e a justiça prevalecem? (...)Porque fizemos a revolução? Pensei que fosse para combater a opressão. Pensei que fosse para nos libertar da tirania. Mas isso é tirania. (...) Já ouve quem matasse pelo poder, por ganância e por ânsia de sangue, mas mostre outra ditadura que mata com eficiência, mas se encanta com a virtude e ostenta seus ideais sobre túmulos abertos. Nos dizemos que fazemos tudo para preservar a Revolução, mas a Revolução nada mais é agora que um cadáver que ainda vive.”
- Camile Desmoulins a Robespierre.
“Você é um aleijado(...) Não é Couthon que é aleijado, é você. Será que não sabe, Robespierre, não sabe que há algo errado com você? Nunca se pergunta o que Deus omitiu na sua criação? (...) Não sei se você é real, vejo-o andar e falar, mas será que existe vida aí dentro?”
- Danton a Robespierre
“Eu tenho vida! Eu tenho vida. A meu modo.”
- Robespierre a Danton
Na Paris de 1789 a violência é justificada! Sua aparente amoralidade desaparece diante do novo significado que lhe é atribuído pela ideologia revolucionária. O resultado não poderia ser diferente de um quadro urbano violento, radical e intolerante; moldura perfeita para um romance histórico de tirar o fôlego.
Em
"A sombra da Guilhotina" a escritora Hilary Mantel narra os eventos por trás da Revolução Francesa a partir de três dos seus mais conhecidos artífices: Camille Desmoulins (jornalista competente e escritor talentoso), Maximilien Robespierre (figura idealista e dono de uma retórica afiada) e Jacques Danton (advogado provinciano e agitador sem igual). Trata-se de um imenso romance político recheado de traições, idealismos, paixões e diálogos empolgantes.
A intercalação da narrativa em primeira e terceira pessoa é apenas um dos inúmeros pontos positivos da obra. A autora utiliza a narração onisciente como amparo para interações verbais recheadas de ironia e sarcasmo, quebrando um pouco da formalidade dos romances escritos sobre a pressão da veracidade dos fatos históricos. A onisciência, e a forma como foi articulada, deixou a narrativa não apenas envolvente, e ágil, mas também artificiosa.
A revolução serve como pano de fundo para a relação de amizade dos três protagonistas. À medida que acompanhamos os primeiros anos de vida dos três jovens, consagrados pela historia graças à ousadia com que levaram a termo seus propósitos, vemos a Revolução se aproximar lentamente no rastro deixado por uma monarquia desestruturada e financeiramente arrasada. Passando pela infância e pela adolescência será logo nos primeiros anos da vida adulta que vemos a tensão se estabelecer no seio da relação de amizade entre eles.
“Vejo o espinho da rosa. Nesses buquês que você me oferece.”, teria escrito Robespierre em um de seus poemas.
Mas nem só de protagonistas se faz uma grande obra. A grande quantidade de personagens do núcleo paralelo amadurece muito ao longo do texto. Lucile, esposa de Camile, uma espécie de personagem tampão e entediante no inicio acaba por finalmente conquistar seu espaço; Gabriele, esposa de Danton, vitima da fama de libertinagem de seu marido; a intempestiva Théroigne de Méricourt e o que dizer da inigualável Manon Roland, autodidata, dona de uma inteligência notável, leitora apaixonada de Rousseau e Plutarco, cuja infelicidade gerada por um casamento com um homem de idade avançada não a impediu de participar ativamente do contexto político de sua época.
“Liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome!” – teria dito diante da iminente execução na guilhotina.
Marat, personagem que a própria autora considera como seu “convidado especial”, devido a suas aparições ocasionais, protagoniza um dos momentos mais intensos de toda a obra: Ao propor o fim da imunidade parlamentar dos deputados ele buscava alargar as margens de atuação do Tribunal Revolucionário para o centro do cenário político.
O lendário verão de 1793 marcaria o fim da aparente unanimidade política, destroçada pelo peso implacável da institucionalização do Terror. É aqui que as divergências entre Danton, Robespierre e Desmoulins se manifestam no plano da política. A amizade, construída pela admiração recíproca, aos poucos se torna mais intensa, não pela afeição inicial, mas pelo medo justificado a partir do nascimento da rivalidade. Em síntese Hilary Mantel conseguiu demonstrar o poder devastador da polaridade como essência das relações humanas.
A autora faz ressonância às palavras de Rousseau, pois assim como o rigor da matemática nasceu do caos e da falta de lógica, quase sempre são os bons sentimentos mal dirigidos que culminam com a implantação do mal.
“São vocês, idealistas, que se tornam os maiores tiranos.” – profetiza Danton em dado momento.
Em meio à pseudo-realidade da soberania popular, impulsionada pelo peso das circunstancias, vemos a luta de três homens, cuja relação, edificada sob um passado regido pela monarquia, se desfaz numa luta desesperada diante da “justiça, imediata, severa, e inflexível” do Tribunal Revolucionário, tendo a paixão como arma e a Revolução como metáfora. Nenhum deles jamais ousou imaginar em seus anos de juventude que um dia veriam nascer a tão sonhada liberdade a sombra da guilhotina.
AUTOR:
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
SOMBRA DA GUILHOTINA, A
Autor: MANTEL, HILARY
Tradutor: WHATELY, VERA
Editora: RECORD
Número de páginas: 784
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