terça-feira, 26 de julho de 2016

ANA KARÊNINA NO JARDIM DAS CEREJEIRAS


“Eu penso que, se há em cada cabeça um juízo, haverá um tipo de amor para cada coração.”
- Ana Karênina
A estrutura escolhida por Tolstoi coloca em relevo as marcas que caracterizam o romance. Pode-se dizer que as tramas que ocorrem paralelamente possuem um ritmo intermitente bem pronunciado através de capítulos curtos e ágeis. Em um dado momento estamos lendo sobre as dificuldades da vida no campo e, subitamente, somos jogados em meio aos dilemas da sociedade urbana.
O principal tema do romance “Ana Karênina” não me parece ser o adultério, mas a sociedade russa do final do século XIX, polarizada entre os costumes da alta sociedade e os do meio rural. O adultério, tema invocado logo nas primeiras paginas, se insere na trama como uma espécie de reflexo adversativo dos valores referentes à reciprocidade arcaica das relações familiares.
Apesar do titulo a obra possui três protagonistas – cuja importância no contexto se define a partir do ponto de vista do leitor. O fato de Tolstoi ter optado por nomear seu romance com o nome de um dos personagens parece remeter a importância que o autor atribui aos dilemas enfrentados por esse personagem. Diante desta premissa literária, aparentemente, temos a impressão de que a personagem de Ana teria como objetivo fazer coro aos valores cristão na imagem do pecador que sofre por violar os mandamentos superiores.
Encarar as mais de 400 paginas do romance com essa idéia pré concebida certamente resultará numa compreensão pobre: a de que o livro conta a história de uma mulher que comete adultério e que em função disso passa a ser julgada pela sociedade. Tolstoi, como um dos grandes representantes da literatura russa, famosa por sua profundidade psicológica e por personagens construídos em três dimensões – físico, psicológico e religioso – vai muito além da impressão inicial. Em Ana Karênina, Tolstoi se iguala a Shakespeare ao mostrar que a tragédia humana nasce sob o amparo de seus desejos e de suas escolhas motivadas pelos sentidos.
Confesso que durante a leitura não senti empatia pela personagem de Ana. Suas falhas como esposa foram, ate certo ponto, compreensíveis dada à tendência de Aleksei (seu marido) de agir como um ser sobre-humano. O que mais destrói o apego do leitor pela personagem e a sua tendência insuportável de incorporar a imagem da figura trágica. A altiva e impulsiva Ana aos poucos sede espaço para uma mulher chorona, viciada em morfina e que a todo custo busca justificar seu comportamento obsessivo a partir do comportamento alheio.
Diametralmente oposto a Ana está Levin, talvez o mais fascinante personagem da obra. As leis do desenvolvimento estariam presentes nas relações de dependência entre o homem e o meio ambiente? Essa pode parecer uma pergunta bastante atual, no entanto, ela é o núcleo da obra escrita por Levin que ao buscar as relações de dependência entre homem e natureza acabou colocando a sociedade agrária russa do final do século XIX como a questão central do desenvolvimento industrial do século posterior.
Outro gênio da literatura russa que adotou um olhar semelhante sobre a sociedade agrícola de seu país foi Anton Tchékhov. Posso dizer que me encantei pela prosa de Tchékhov. Eu ainda não havia tido o prazer de mergulhar em sua obra até que recentemente li “O jardim das Cerejeiras”, sua ultima e mais famosa peça. Escolhida para ser representada pelo Teatro de Artes de Moscou logo após a noticia da vitoria sobre a Alemanha Nazista, em maio de 1945, a peça consistia num marco simbólico da historia russa. Misteriosamente ela possui um forte componente transicional, uma autêntica introdução artística a mudanças sociais e políticas: foi a ultima peça a ser encenada em São Petersburgo antes da tomada do poder pelos Bolcheviques.
Trata-se de uma peça curta, de quatro atos, que mantém uma linguagem absurdamente cômica até a mudança para um tom mais dramático no final. A história gira em torno de uma família da decadente aristocracia russa cujo drama se constrói a partir da venda da propriedade onde está o outrora produtivo jardim das cerejeiras. Logo no inicio percebemos o uso metafórico do jardim como retrato do passado rural da sociedade russa. A nostalgia desencadeada pela proximidade do leilão retrata o sentimento dominante entre as tradicionais famílias aristocráticas diante das incertezas trazidas pelo século que se descortinava. Retrato de seu tempo o jardim simboliza um passado cujos moldes não se encaixavam dentro da nova realidade.
“O jardim das cerejeiras” marca o fim da carreira de Tchékhov e também o fim de uma longa era da historia russa ligada ao campo. As sombras em meios aos pés de cerejeira contrastam com a beleza contemplativa e ao mesmo tempo condenada ao esquecimento. O lugar que tantas lembranças guardava se encontrava diante daquela forma de morte que acomete os despossuídos de alma: o esquecimento.
Tolstoi e Tchékhov construíram obras de inigualável grandiosidade e cuja mensagem é bastante clara: Quando deixamos para traz o passado algo de belo se perde. A natureza tem seus métodos de deixar sua marca. O jardim, segundo Tchékhov, ou o campo, segundo Tolstoi, é o coração do homem: assolado pelos ventos e inconstante devido às mudanças provocadas pelo tempo. Possui uma beleza enraizada no solo fértil da esperança da primavera. É generoso com aqueles que se dedicam ao seu cultivo. O passado que se oculta as sombras de suas arvores às vezes parece morto como folhas secas e às vezes doce como uma cereja.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO

quarta-feira, 13 de julho de 2016

INTERPRETAÇÃO DA MUSICA “I STARTED A JOKE” – BEE GEES


I started a joke
Which started the whole world crying
But I didn't see
That the joke was on me
I started to cry
Which started the whole world laughing
Oh, if I'd only seen
That the joke was on me
I looked at the skies
Running my hands over my eyes
And I fell out of bed
Hurting my head from things that I'd said
'Till I finally died
Which started the whole world living
Oh, if I'd only seen that the joke was on me
A canção “I Started a Joke”("Eu comecei uma piada") é um dos maiores sucessos do Bee Gees. Lançada como Single em 1968 a letra possui um forte traço reflexivo. A própria melodia que preenche a canção possui um ritmo que acompanha o forte sentimentalismo do vocal. Interpretações diversas já foram feitas de seus versos, mas gosto de interpretar essa canção como uma espécie de lamento, uma desolação sentimental diante da estupidez e do conservadorismo humano, traços marcantes de nossa sociedade.
Eu comecei uma piada
Que fez o mundo inteiro chorar
Mas eu não vi
Que a piada era eu
Nesta primeira parte o individuo toma consciência da realidade. Ele chama de piada porque era engraçado como ninguém ainda não havia enxergado aquilo. Era tão obvio, embora muito pouco lógico e improvável, mesmo assim era obvio. Mas aquela era uma verdade negra, nebulosa, difícil de aceitar. Uma vez exposta causaria sofrimento, medo, incerteza, exporia um aspecto da vida que destrói os sonhos por meio da idéia de destino. O que a voz marcada pelos versos não parecia compreender e que para a maioria das pessoas a sua revelação seria motivo de riso, chacota, pois seria infinitamente mais conveniente e fácil enxergar no meio da multidão um louco ao invés de um gênio.
Eu comecei a chorar
O que fez o mundo inteiro rir
Ah, se eu apenas tivesse visto
Que a piada era eu
Seu desespero crescia à medida que era massacrado pela opinião dos demais. Riam de suas palavras e ele sofria por compreender que sabia mais do que os outros e isso trazia para si próprio a necessidade de uma atitude! Mas onde encontrar forças para seguir apresentando sua verdade?
Eu olhei para o céu
Passando as mãos sobre os meus olhos
E eu caí da cama
Machucando a cabeça com as coisas que eu disse
Aparentemente ele busca nas supostas divindades algo que lhe sirva de amparo. Recorre aos céus na busca por um raio de luz que ilumine a ignorância dos demais. Mas a ajuda não vem e aos poucos ele se convence de que tudo não passou de um sonho. Sua racionalidade começa a ser questionada, não pelos outros, mas por si próprio. A loucura da realidade de alguém que sufoca sua voz interior em nome do senso comum acaba por levá-lo ao delírio. Sua mente havia sido machucada...a ignorância humana parecia não ter cura.
Até que eu finalmente morri
O que fez o mundo inteiro viver
Ah, se eu apenas tivesse visto que a piada era eu
Após a sua morte, após a morte daquilo que ele tanto tentou mostrar, o mundo segue vivendo como se ele nunca ouves se existido. Talvez em algum momento, em um ligeiro lapso, alguém se lembre de sua vida e diga: sim, de fato alguém já tentou trilhas as raias desse caminho, mas não era um sujeito serio... ele apenas contava piadas.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO

SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO


Piramo era o mais belo jovem de Babilônia, assim como Tisbe era a mais bela dentre as mulheres. Ambos se amavam, mas diante de seu amor havia a proibição de seus pais. Acreditando na força de seus sentimentos eles planejam uma fuga. Combinam de se encontrarem perto de uma amoreira de folhas brancas ao lado de um lago. Tisbe havia chegado ao local antes de Piramo; usava um lenço sobre a cabeça e vendo que seu amado ainda não se encontrava presente resolveu se sentar aos pés da amoreira enquanto aguardava.
Uma leoa com os restos de sua presa ainda entre os dentes se aproximou atraída pelas águas do lago. Tisbe amedrontada fugiu do local deixando seu lenço cair. Quando Piramo chegou viu a fera com o lenço de sua amada entre os dentes ensangüentados. Julgando que Tisbe havia sido devorada pela fera Piramo tira sua própria vida. Ao ver o amado morto Tisbe segue o mesmo caminho. O sangue de ambos é absorvido pela amoreira e seus frutos se tornam vermelhos, cor de sangue.
Pode parecer estranho que uma comedia, como é o caso da peça de Willian Shakespeare, “Sonho de uma noite de verão”, possa ter como núcleo a tragédia de Piramo e Tisbe. Seria de fato estranho se fosse uma abordagem literal da tragédia, mas Shakespeare conseguiu transpor o gênero trágico para o cômico ao adotar uma ótica burlesca. Nesse ponto confesso que pela primeira compreendi a dimensão de Shakespeare, como ele é atual e intenso. Ao me deparar com uma comedia com eventos dramáticos imediatamente me lembrei do trecho de uma das mais famosas canções do Bee Gees: “started a joke. Which started the whole world crying”
Não apenas a ótica diferenciada foi responsável por dar ao texto seu tom de comedia. As peças de Shakespeare pertencem ao gênero dramático. Acredita-se que esse gênero tenha surgido na Grécia antiga durante os rituais ao deus Dionísio. A comedia supostamente teria se originado dos mesmos rituais, portanto, a própria origem da comedia teatral explica a transposição entre os gêneros, inicialmente considerados sinônimos. A grande questão na peça “Sonho de uma noite de verão” é compreender a extensão do papel da natureza como elemento caracterizador.
O drama de Piramo e Tisbe possui uma arvore como objeto central, origem de toda emanação do sentido filosófico através do qual o amor é construído. A arvore, portanto, teria todos os atributos físicos - raízes, tronco, ramos e folhas – que se prestassem ao papel de representante metafórico do conceito de amor shakespereano: cresce sobre uma forte dependência afetiva (raíz), se transforma numa solida união entre corpo e alma (tronco) e se ramifica em diferentes formas através do tempo (ramos). Aqui o aspecto intermitente do amor também é explorado simbolicamente: o amor pode ser pleno de conflitos, mas de tempos em tempos ele renasce na forma de frutos e folhas. Uma arvore, testemunha inanimada do fim de uma história trágica, serviu perfeitamente a Shakespeare, um gênio que por toda a sua vida tentou sinalizar a intensidade das emoções.
A grande sacada de Shakespeare foi perceber que essa arvore simbolizava a figura do próprio dramaturgo uma vez que esta foi capaz de absorver as marcas da tragédia e expressa-las na sua própria imagem. Os eventos são limitados pelo tempo humano, mas a força por traz de tais eventos transcende os limites do tempo e se expressam na forma de arte! A natureza teria convertido a historia em arte, teria não apenas recontado uma história, mas dado um novo sentido a ela, assim como o próprio Shakespeare que, conforme se acredita, não escrevia roteiros originais, mas criava histórias a partir de fatos reais, ou seja, dava um novo sentido à realidade.
A história de Piramo e Tisbe sugere uma antecipação mitológica do enredo que mais tarde daria forma a peça “Romeu e Julieta”, no entanto, “Sonho de uma noite de verão” possui um enredo próprio que se sobrepõe a tragédia grega. A peça começa com os preparativos para o casamento de Teseu, um Duque de Atenas, com Hipólita, rainha das amazonas. Teseu é chamado para ajudar a solucionar um dilema amoroso: Demetrio, um nobre de Atenas, é apaixonado pela filha de Egeu, chamada Hérmia, que por sua vez é apaixonada pelo príncipe Lisandro. Teseu apresenta a Hérmia três alternativas: ou casa-se com Demetrio conforme a vontade de seu pai; se converte e passa a viver a clausura de um convento ou abandona o amor de Demetrio e se entrega a Lisandro – neste ultimo caso sendo condenada a morte por desobediência ao seu pai.
A margem de todo esse dilema aristocrático está Helena, melhor amiga de Hérmia, e a mais bela dentre as mulheres atenienses. Só havia um inconveniente: Helena era apaixonada por Demetrio, que no passado havia feito juras de amor à bela Helena. Para Hérmia e Lisandro só havia uma alternativa: fugir. No teatro Shakespereano a paixão encarna o elemento trágico devido a sua força transgressora: Leis são ignoradas e laços familiares são desfeitos diante do elemento passional.
Em um bosque próximo a cidade de Atenas, Titânia, a rainha das fadas, se recusa a permitir que seu marido Oberon transforme um jovem menino em seu criado. Oberon irritado com a recusa de Titânia manda que Puck, um elfo da floresta, traga-lhe uma flor de Amor-perfeito, para que com ela faça uma poção que uma vez despejada sobre os olhos faz com que a pessoa se apaixone pelo primeiro ser vivo que encontrar pelo caminho.
Em Atenas, Helena revela a Demetrio que Lisandro e Hérmia haviam fugido para um bosque nas proximidades. Helena e Demetrio adentram na floresta no exato momento em que Puck havia partido para buscar a flor de Amor-perfeito. Oberon, que estava à espera, ficou irritado com a forma grotesca com que Demetrio tratava Helena e assim que Puck retornou mandou que este encontrasse um homem vestido em trajes aristocráticos e despeja-se sobre seus olhos um pouco do suco da flor. Oberon segue para o local onde Titânia dorme e despeja em seus olhos a porção.
Enquanto isso Puck vaga pela floresta a procura de seu alvo e acaba encontrando uma companhia de atores que ensaiavam para uma peça sobre o drama de Piramo e Tisbe. Bottom, o tecelão da companhia de teatro, ensaiava o papel de Piramo. Puck, querendo pregar uma peça na trupe, transformou Bottom em um homem com cabeça de burro. Assustados os outros atores fogem e deixam Bottom vagando sozinho pela floresta. Assim que Titânia desperta de seu sono ela vê Bottom diante de seus olhos e se apaixona por ele. Puck que ainda procurava pela floresta por um homem em trajes aristocráticos acaba encontrando Lisandro, adormecido sobre a relva, e despeja em seus olhos a porção de Amor-perfeito. Após inúmeros mal entendidos Puck também despeja a porção nos olhos de Demetrio. Aos despertarem Demetrio e Lisandro se deparam com a imagem de Helena e ambos se apaixonam por ela.
Com muitos personagens, muitos encadeamentos e desdobramentos o enredo se torna um pouco complexo quando visto na forma de resumo, mas a leitura do texto em si não é tão complicada como parece. Basicamente o que vemos na peça é a transformação do amor em ilusão, algo que, ao contrario do que se espera, parece reforçar sua intensidade. Neste ponto a natureza aparece com uma forma superior de existência, pois ela brinca com uma das mais intensas patologias humanas: a paixão. Sempre enxerguei “Sonho de uma noite de verão” como uma alegoria para a busca de sentido por trás do que não conseguimos explicar.
Ao colocar a tragédia grega como temática de uma peça de teatro, e cujo enredo se pareia com o dilema amoroso do quarteto principal, é como se Shakespeare quisesse mostrar o poder dos palcos como espelho cômico da realidade. Ele propõe uma inversão bastante interessante: trata a mitologia, encenada nos palcos, como uma realidade e ao mesmo tempo trata a realidade como uma lenda.
Por envolver temas da mitologia o enredo de “Sonho de uma noite de verão” pode causar certa hostilidade inicial ao leitor devido ao seu distanciamento da realidade. Mas não seria essa a principal essência do teatro? Suspensão momentânea da realidade? Para acreditar que s personagens encima do palco são reais não é, antes de tudo, fundamental que neguemos aos atores por trás das mascaras o direito de existir enquanto o espetáculo não termina?
Existe algo muito interessante em “Sonho de uma noite de verão” que é a exposição da natureza como ela é de fato: caótica, enganadora e indiferente aos nossos propósitos. Em diversos momentos vemos um flerte com a idéia de impotência do homem diante da natureza e dos perigos ocasionados pela busca em subordinar os elementos naturais aos desejos do próprio homem.
A questão da porção, que uma vez depositada sobre os olhos, faz a pessoa se apaixonar pelo primeiro que enxergar ilustra bem a indiferença da natureza a vontade ou aos padrões estéticos. O mito de Piramo e Tisbe, por exemplo, mostra que as forças da natureza são indiferentes aos laços de afeto humano. É uma concepção de natureza bastante cruel ainda que bela.
A noção de um ambiente natural favorável a sobrevivência humana é um sonho que se desfaz diante da realidade. A natureza oprime na mesma proporção que liberta. A sobrevivência em seu meio é infinitamente mais custosa e exige no mínimo o vigor da juventude.
De alguma forma Shakespeare remete a uma interpretação finalista e até teológica da natureza onde os animais e as plantas, organizados de forma hierárquica, teriam como função servir ao homem. Nesse aspecto os sentimentos do próprio homem adquirem valor hierárquico superior as supostas criações divinas naturais, pois o homem era capaz de controlar relativamente a natureza, mas se mostrava impotente diante de suas paixões. A razão domina tudo exceto a desordem mental que lhe deu vida.
Shakespeare pode parecer buscar a imagem infantil de uma natureza que se sensibiliza com os dramas humanos, mas o que ele faz de fato é o oposto disto. Oberon por exemplo é um personagem que funciona como uma espécie de projeção dos elementos da natureza, assim como Titânia. Ambos os personagens mostram em determinado momento uma espécie de compaixão pelo drama humano: Oberon se enfurece ao ver Demetrio tratar Helena de forma cruel e Titânia se solidariza com a figura do menino que Oberon queria transformar em seu criado. Percebe-se que os únicos elementos que não ficam indiferentes aos dramas humanos são seres mitológicos e portanto irreais.
Alem de irreais são também contraditórios. Oberon se sensibilizou pela condição de Helena, mas parece não ter visto problema algum em transformar uma criança em seu criado particular. Titânia pode em um primeiro momento parecer altruísta, mas na realidade demonstra uma sensibilidade que se ampara no interesse: ela se sensibiliza com a criança por que essa era filho de uma mulher que lhe era devota. Nota-se que esses personagens possuem contradições e fraquezas, o que é perfeitamente compreensível uma vez que são figuras mitológicas gregas que nunca foram construídas com a mesma pretensão cristã de um Deus onipotente e sem defeitos.
Os seres mitológicos gregos são “humanizados”, ou seja, apresentam os mesmos defeitos que os humanos por que são uma criação da consciência humana. E nesse ponto que Shakespeare rompe com o ideal romântico de natureza, pois todos os elementos da natureza que respondem aos dramas humanos são elementos criados pela consciência humana.
Essa busca mental por um meio natural onde a vida seria melhor do que ela é já havia sido criado pela bíblia por meio de Adão e Eva no jardim do Eden. A partir daí o sonho idílico de viver e meio a natureza onde supostamente o homem encontra a paz que tanto busca passou a acompanhar a realidade. Shakespeare não se alinhou a esse ideal e buscou mostra em sua obra que a vida na natureza é não apenas caótica, mas também trágica, o que no fim das contas acaba sendo vista como bela.
A riqueza temática da obra de Shakespeare possuía uma vastidão que cobre diversos conceitos em diversas épocas. Como um amante da química, confesso que me senti fascinado pela simbologia de algumas peças e pela proximidade dos temas com conceitos explicados pela química como ciência. Sabemos que a paixão se manifesta em nossos corpos devido à influência de substancias químicas que causam sensação de bem estar como, por exemplo, as endorfinas.
Atualmente a simbologia da floresta mágica pode ser interpretada como as substancias psicoativas presentes nas plantas e que podem provocar delírios e alucinações. Muitas são as obras de Shakespeare onde são feitas referências a extratos de plantas alucinógenas ou venenosas. Julieta parece ter experimentado os efeitos do chá de Beladona, Hamlet teve o pai assassinado com veneno de Hebona derramado diretamente em seu ouvido. A química é uma ciência que cobra um preço auto de todos aqueles, que de alguma forma, negligenciam o seu poder devastador sobre os sentidos - reflexo das necessidades afetivas. O dependente químico ou o alcoólatra são exemplos disto. Um dos aspectos mais interessantes de “Sonho de uma noite de verão” é o conceito antropomórfico dado a alguns personagens. Essa atribuição de características humanas a elementos da natureza pode ser encarada como uma manifestação dos sentidos – algo muito explorado por Shakespeare – e, por conseguinte como uma forma de alucinação.
A mente que se liberta do seu racionalismo, como durante um sonho, experimenta sensações que são dominadas pelo instinto e pelo desejo. O sonho liberta os amantes de seus juramentos e dessa forma permite a expressão do caráter frágil de suas palavras. Seriam seus sentimentos verdadeiramente sinceros? Titânia, a rainha das fadas, representa a mente sempre receptiva as diversas vertentes de alucinação. Não é sem motivo que o absinto, bebida que ganhou fama no século XIX por causar alucinações, era conhecida por seus consumidores como “fada verde”. Deixando um pouco de lado essa “analise química” da peça “Sonho de uma noite de verão”, o que resta e um texto magnífico que explora os efeitos do amor e da despersonalização provocada pelo mesmo.
Para Shakespeare amar é ser vulnerável a uma forma particular de obsessão na qual o outro vive na realidade dos meus desejos e permanece como causa primeira de meus infortúnios na medida em que nego a mim mesmo o direito de existir - e isso acontece quando deixo de valorizar meu “eu” inconsciente - e passo a permitir que o outro imprima em mim os seus desejos e as suas necessidades. Em síntese quando amo e sou correspondido, passo a viver na consciência do outro e o outro na minha. A profundidade insana do conceito de amor construído por Shakespeare em sua obra é tão intensa que vai além da simples reciprocidade do sentimento de companheirismo e ou de desejo. Ela sugere um intercambio de consciência, uma sobreposição de valores, uma forma onírica de pura satisfação sexual e ectasy. Nesse aspecto pode-se perfeitamente caracterizar o amor shakespereano como uma síntese dos elementos patológicos. Uma assimilação afetiva de paranóias cuja força perturbadora seria proporcional ao enredo que lhe da vida.
Do dialogo entre Hérmia e Helena, logo no primeiro ato, pode se enxergar como, e a que nível, o senso de inferioridade nos oprime e nos esmaga. Como em alguns momentos vemos em outras pessoas os “atributos de felicidade” que supostamente nos faltam. Em como somos frágeis e manipulados por nossos próprios sentimentos ao nos permitir enxergar aquilo que falta não a nós, mas ao outro. Não seria exatamente este o motivo do sofrimento de Helena? Ver em Hérmia não a sua real imagem, mas o conjunto de características que fizeram de sua beleza a dona dos sentimentos de Demetrio?
HÉRMIA: Faço-lhe cara feia, ele me adora.
HELENA: Tivesse eu risos feios desde agora!
HÉRMIA: Maldigo-o, e ele me devota seu amor
HELENA: Quem me dera obter tamanha afeição em minhas suplicas!
HÉRMIA: Encontra-se em vias contrarias seu amor e meu desdém.
HELENA: Com o seu desprezo o meu amor também.
HÉRMIA: De tal loucura a culpa não é minha.
HELENA: É de tua beleza. Quisera que essa culpa fosse a minha!
Helena é como uma vela que derrama lagrima enquanto bilha e se consome diante do seu amado. Retrato perfeito da paixão – sentimento intenso e ardente que trás a desconfiança, a insegurança e o medo como reflexo. A fragilidade de seu brilho remete ao aspecto efêmero da felicidade sempre rasa em substancia e, portanto, superficial: a vida é como a chama tênue de uma vela, frágil a tal ponto que se extingue até mesmo diante de um sopro do acaso. Somos felizes quando compreendemos o que vemos, a duvida é o primeiro degrau da incerteza que leva ao nível da melancolia. Helena não compreende como Demetrio pode se deixar levar pela beleza de Hermia e por isso trata da melancolia como uma mascara de seus sentimentos.
Confesso que a peça parece possuir laços estreitos com algumas obras medievais. Shakespeare simboliza a imagem do amor por meio de uma flor – o Amor-perfeito - o que de certa forma remete ao romance medieval de Guillaume de Lorris e Jean Meun, chamado “O romance da Rosa”, na qual o personagem principal se apaixona por um botão de rosa. Shakespeare reconhece o poder que a beleza exerce sobre os sentidos e ao atribuir ao amor à imagem de uma flor reafirma o caráter doloroso do sentimento amoroso, afinal Lady MacBeth já dizia: “Assemelhe-se à flor inocente, sob a qual se oculta a serpente.”
AUTOR TIAGO RODRIGUES CARVALHO
SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO
Editora: Martin Claret
Paginas: 120

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