domingo, 24 de agosto de 2014

A REVOLUÇÃO COMO METÁFORA: AS TRÊS FACES DE UMA AMIZADE


“(...) ficava em uma janela das Tulherias, observando as carroças fazer seu percurso de morte; às vezes às seguia ate o final do trajeto e misturava-se a multidão. Ouviu falar de esposas que denunciavam seus maridos ao Tribunal, e maridos que denunciavam as esposas; mães que ofereciam os filhos à justiça Nacional e filhos que traíam os pais. Viu mulheres com bebes recém-nascidos amamentando até a carroça chegar. Viu homens e mulheres escorregarem e caírem sobre o sangue derramado de seus amigos, e os carrascos erguerem-nos pelos braços amarrados. Viu cabeças pingando sangue serem levantadas para a multidão olhar. - Por que você se força a ver essas coisas? – alguém lhe perguntou. - Estou aprendendo a morrer.”
- Herault de Séchelles
“Você acha que lealdade é encobrir os fatos, fingir que a razão e a justiça prevalecem? (...)Porque fizemos a revolução? Pensei que fosse para combater a opressão. Pensei que fosse para nos libertar da tirania. Mas isso é tirania. (...) Já ouve quem matasse pelo poder, por ganância e por ânsia de sangue, mas mostre outra ditadura que mata com eficiência, mas se encanta com a virtude e ostenta seus ideais sobre túmulos abertos. Nos dizemos que fazemos tudo para preservar a Revolução, mas a Revolução nada mais é agora que um cadáver que ainda vive.”
- Camile Desmoulins a Robespierre.
“Você é um aleijado(...) Não é Couthon que é aleijado, é você. Será que não sabe, Robespierre, não sabe que há algo errado com você? Nunca se pergunta o que Deus omitiu na sua criação? (...) Não sei se você é real, vejo-o andar e falar, mas será que existe vida aí dentro?”
- Danton a Robespierre
“Eu tenho vida! Eu tenho vida. A meu modo.”
- Robespierre a Danton
Na Paris de 1789 a violência é justificada! Sua aparente amoralidade desaparece diante do novo significado que lhe é atribuído pela ideologia revolucionária. O resultado não poderia ser diferente de um quadro urbano violento, radical e intolerante; moldura perfeita para um romance histórico de tirar o fôlego.
Em "A sombra da Guilhotina" a escritora Hilary Mantel narra os eventos por trás da Revolução Francesa a partir de três dos seus mais conhecidos artífices: Camille Desmoulins (jornalista competente e escritor talentoso), Maximilien Robespierre (figura idealista e dono de uma retórica afiada) e Jacques Danton (advogado provinciano e agitador sem igual). Trata-se de um imenso romance político recheado de traições, idealismos, paixões e diálogos empolgantes.
A intercalação da narrativa em primeira e terceira pessoa é apenas um dos inúmeros pontos positivos da obra. A autora utiliza a narração onisciente como amparo para interações verbais recheadas de ironia e sarcasmo, quebrando um pouco da formalidade dos romances escritos sobre a pressão da veracidade dos fatos históricos. A onisciência, e a forma como foi articulada, deixou a narrativa não apenas envolvente, e ágil, mas também artificiosa.
A revolução serve como pano de fundo para a relação de amizade dos três protagonistas. À medida que acompanhamos os primeiros anos de vida dos três jovens, consagrados pela historia graças à ousadia com que levaram a termo seus propósitos, vemos a Revolução se aproximar lentamente no rastro deixado por uma monarquia desestruturada e financeiramente arrasada. Passando pela infância e pela adolescência será logo nos primeiros anos da vida adulta que vemos a tensão se estabelecer no seio da relação de amizade entre eles. “Vejo o espinho da rosa. Nesses buquês que você me oferece.”, teria escrito Robespierre em um de seus poemas.
Mas nem só de protagonistas se faz uma grande obra. A grande quantidade de personagens do núcleo paralelo amadurece muito ao longo do texto. Lucile, esposa de Camile, uma espécie de personagem tampão e entediante no inicio acaba por finalmente conquistar seu espaço; Gabriele, esposa de Danton, vitima da fama de libertinagem de seu marido; a intempestiva Théroigne de Méricourt e o que dizer da inigualável Manon Roland, autodidata, dona de uma inteligência notável, leitora apaixonada de Rousseau e Plutarco, cuja infelicidade gerada por um casamento com um homem de idade avançada não a impediu de participar ativamente do contexto político de sua época. “Liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome!” – teria dito diante da iminente execução na guilhotina.
Marat, personagem que a própria autora considera como seu “convidado especial”, devido a suas aparições ocasionais, protagoniza um dos momentos mais intensos de toda a obra: Ao propor o fim da imunidade parlamentar dos deputados ele buscava alargar as margens de atuação do Tribunal Revolucionário para o centro do cenário político.
O lendário verão de 1793 marcaria o fim da aparente unanimidade política, destroçada pelo peso implacável da institucionalização do Terror. É aqui que as divergências entre Danton, Robespierre e Desmoulins se manifestam no plano da política. A amizade, construída pela admiração recíproca, aos poucos se torna mais intensa, não pela afeição inicial, mas pelo medo justificado a partir do nascimento da rivalidade. Em síntese Hilary Mantel conseguiu demonstrar o poder devastador da polaridade como essência das relações humanas.
A autora faz ressonância às palavras de Rousseau, pois assim como o rigor da matemática nasceu do caos e da falta de lógica, quase sempre são os bons sentimentos mal dirigidos que culminam com a implantação do mal. “São vocês, idealistas, que se tornam os maiores tiranos.” – profetiza Danton em dado momento.
Em meio à pseudo-realidade da soberania popular, impulsionada pelo peso das circunstancias, vemos a luta de três homens, cuja relação, edificada sob um passado regido pela monarquia, se desfaz numa luta desesperada diante da “justiça, imediata, severa, e inflexível” do Tribunal Revolucionário, tendo a paixão como arma e a Revolução como metáfora. Nenhum deles jamais ousou imaginar em seus anos de juventude que um dia veriam nascer a tão sonhada liberdade a sombra da guilhotina.
AUTOR: TIAGO RODRIGUES CARVALHO
SOMBRA DA GUILHOTINA, A
Autor: MANTEL, HILARY
Tradutor: WHATELY, VERA
Editora: RECORD
Número de páginas: 784

AS CORES DA ALMA: VAN GOGH - UMA VIDA


“A arte é o coeficiente individual do erro (...) no esforço de atingir a expressão da forma.”
- W. Sickert
“O que caracterizava sua obra como um todo é seu excesso, excesso de força, de nervosismo, a violência de expressão.”
- Albert Aurier
A religião deixa um vazio que a ciência, apesar de sua lógica, não consegue preencher. Seria a arte a única capaz de ocupar essa lacuna da típica inconstância da alma? O mundo humano é predominantemente simbólico. Nossa forma de comunicação, escrita ou verbal, se baseia em relações de semelhança, arbitrariamente definidas, entre o objeto e seu signo linguístico. O que torna a arte, sobretudo as visuais, uma forma única de expressão inconsciente da psique humana é justamente a liberdade que o artista tem em redefinir essas relações de semelhança entre o objeto real e a imagem que se faz dele através de diferentes perspectivas.
A história da arte não poderia ser escrita senão por aqueles, que de alguma forma, ousaram distorcer a realidade por meio de seus traços e suas cores. Vincent Van Gogh, o “gênio louco” como também é conhecido, se tornou um dos mais fascinantes representantes das artes visuais de seu tempo. O garoto estranho, de cabelos ruivos flamejantes, “teimoso”, “desobediente” e de “temperamento difícil” não era nada promissor aos olhos de seu pai, um rigoroso pastor protestante. Ninguém poderia imaginar que aquela existência sem raízes da sua juventude culminaria num artista incompreendido que pintava uma realidade individual e ao mesmo tempo abstrata.
Após vários anos de pesquisa, Steven Naifeh e Gregory White Smith concluíram aquela que já esta sendo chamada de a biografia definitiva sobre o “poeta dos ciprestes e girassóis”. Em “Van Gogh, a vida” eles apresentam um imenso quadro descritivo sobre a vida de um das mais intrigantes personalidades da história da arte. A obra causou polemica, principalmente na Holanda, devido à proposta ousada dos autores de questionar o suicídio de Van Gogh, alegando que o ato teria sido acidental.
Apesar dessa proposta contra-factual a obra é sem duvida uma das mais belas e bem escritas biografias já lançadas. Através da imensa quantidade de correspondências trocadas entre Vincent e seu irmão Theo, Naifeh e Smith pintam um quadro absurdamente realista da vida assolada por tragédias desse gênio que sempre admirou da beleza da luz, mas que habitou na escuridão indescritível do inconsciente.
A obra, ricamente ilustrada, aborda o relacionamento difícil de Vincent com o pai, suas obsessões religiosas, a reprovação materna, a indiferença dos parentes, a vida oscilante entre os bordeis parisienses e o ateliê de pintura, a revolução artística representada pelo Impressionismo, seus relacionamentos amorosos, suas repentinas crises epiléticas e depressivas, as constantes internações nos hospitais psiquiátricos até o seu suicídio na tarde de 29 de julho de 1890.
Em “Van Gogh, a vida” temos o retrato de um homem que ao mergulhar numa espiral de auto-reprovação terminou como espectador de sua própria loucura e de sua fragilidade diante de uma sociedade demente e marginalizada. Sua sensibilidade foi capaz de capturar a inconstância das formas e condensá-la numa forma única de representação visual. Seu exagero nas cores, sobretudo do amarelo, cor do sol e das chamas, e do azul, cor do céu e dos mares, se deve a essa luta constante para encontrar a luz de infinitas possibilidades que estava além de sua realidade abstrata. Sua arte emerge como um contorno claro e berrante de seus aspectos inconscientes. “Em minha loucura, meus pensamentos singraram muitos mares.” – teria escrito Vincent em uma carta para seu irmão Theo.
Ao longo da leitura nos maravilhamos em pensar que mente humana encontrou nas artes visuais um meio de manifestar aquilo que a torna uma singularidade absoluta dentre as criações da natureza, isto é sua lógica fundamental, e ao mesmo tempo sua nêmeses, cujo irracionalismo típico é capaz de permitir as maiores alegrias e provocar as maiores tragédias. O contraste de cores, nesse caso, não pode ser visto apenas com um recurso estético, ele representa aquilo que caracteriza a essência humana: o conflito.
A arte de Van Gogh não possuí um fim em si mesma; a profusão de cores desaparece assim que desviamos os olhos de suas telas, mas o sublime permanece. Em suas pinceladas vemos a simples ilusão por trás do obvio. Aquele que durante a vida teve a solidão como companheira e a arte como amparo não poderia imaginar que construía sobre seus fracassos o paradoxo artististico mais impressionante de todos: sua história foi na realidade sua mais grandiosa obra prima!
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
VAN GOGH - A vida
Steven Naifeh e Gregory White Smith
Páginas: 1128
Acabamento: Capa dura
Selo: Companhia das Letras

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