sábado, 25 de março de 2017

PARAÍSO PERDIDO


Temos aqui um texto difícil de ler e com uma complexidade que vai desde palavras difíceis a uma métrica poética nada convidativa. É um texto custoso de se ler, arrastado, mas isso não significa que seja ruim, muito pelo contrario: trata-se de um texto desafiador. Talvez não seja um épico tão conhecido, como é o caso da “Ilíada” e da “Odisséia”, porque não se trata de um enredo completamente original. Ele é basicamente a história do Genesis bíblico, mas que se articula de forma genial através das palavras irônicas de um dos maiores poetas da literatura inglesa.
É sempre complicado fazer uma critica de “Paraiso Perdido” sem correr o risco de ser mal compreendido. Uma critica é uma analise dos elementos que compõem a obra, como enredo, tradução, estruturação, fluidez narrativa etc. Uma critica focada apenas nos elementos mais técnicos se torna improdutiva porque restringe seu publico alvo. Para construir uma critica mais atrativa são os elementos de criação artística que devem ser evidenciados, como por exemplo, os personagens. E é ai que começa toda a problemática em torno da obra de John Milton, pois o protagonista é ninguém menos que satã.
A forma como Milton o construiu fez dele não apenas o mais interessante como também o mais humano dos personagens. Ele é cruel, irônico, ambicioso, manipulador, mas também tem seus momentos de angustia, arrependimento onde reconhece seu caráter e a natureza egoísta de suas intenções depravadas. Os cinco solilóquios de satã (IV,32-113,358-92,505-35;IX,99-178,472-93.) são os momentos mais intrigantes da obra. São estes os trechos onde fica evidente a assinatura de um texto literário de qualidade.
A reflexão, aquele momento em que o individuo dá atenção a sua voz interior, é talvez o mais importante alicerce do caráter. São os conselhos auto gerados que definem a nobreza moral de cada um. Por essa perspectiva Satã surge no poema como uma figura desprovida de qualquer traço de empatia. É um personagem melancólico, ambicioso e inseguro, mas que se vale de sua astucia e perspicácia para confrontar seus dilemas.
Absorver as imagens por trás dos versos brancos de Milton não é uma tarefa das mais fáceis, principalmente se você não for um leitor habitual de poesia. O estranhamento inicial é completamente natural, mas depois de algumas paginas consegue-se acompanhar tranquilamente o estilo do autor.
O conteúdo da obra é absurdamente polemico, isto porque se trata de um poema épico onde o mau e o bem se confundem em diversos momentos como em um trecho do Livro V onde o anjo Rafael diz a Adão e Eva que Deus exige obediência cega. Isso faz com que Deus seja visto como uma figura que governa através da subjugação. A tirania dos céus da qual Satã se refere está implícita nas palavras de Rafael que diz que Adão e Eva são “livres” para escolherem se obedecem ou não a Deus. No caso de optarem por não obedecer seriam castigados.
Nenhum castigo deveria ser aplicado a aqueles que têm “liberdade” de escolha. O castigo pressupõe a ideia de que um dos caminhos é errado, mas quem define, neste caso, o certo e o errado é o próprio Deus de forma arbitraria. Satã governa pela astucia e pela ganância: engana, corrompe, manipula. Deus governa pela submissão e pela ameaça de punição. Deus assume a figura de um ditador e Satã a de um político demagogo, cruel e vaidoso.
Milton ataca a ideia de superioridade da espécie humana, algo muito pregado pela ortodoxia cristã. Deus fez dos anjos príncipes para que estes o idolatrassem, mas um terço deles se revoltou contra Deus. Deus fez dos homens príncipes para que reinassem sobre as demais formas de vida “irracionais” e sobre a natureza. A tirania do homem sobre a natureza fez com que esta se revoltasse contra o homem. Deus fez do homem um espelho de seus próprios erros!
Essa é a face humana que Deus assume de forma velada no poema e que o distancia do ser onipotente e abstrato criado pelas impressões iniciais. Até quando as pessoas vão continuar ignorando que o Genesis é na verdade uma lição para conter o senso torpe de superioridade que o homem nutre por sua própria espécie?
Esse épico sem par possui uma grandiosidade literária que por muito tempo foi ocultada pela interpretação simplista e errada de seu texto. Definitivamente não é um texto que idolatra a figura de Satã. Ele apenas reconhece seu inegável papel dentro da filosofia cristã.
A obra em si é um dos maiores feitos da literatura universal, mas a edição da Editora 34 deixa muito a desejar em seu projeto gráfico. Com tradução de Daniel Jonas, a obra de 10.565 versos em edição bilíngue, conta com mais de cinqüenta ilustrações do genial Gustav Doré, o problema é que a editora ampliou em excesso essas ilustrações. O resultado final foi lamentável: as ilustrações originais possuem um aspecto tenebroso e assustador.
Ao retalhar e ampliar essas mesmas imagens a editora conseguiu transformá-las em algo tosco e até mesmo infantil. Existem também alguns erros grotescos nas notas de rodapé. Em um dele, por exemplo, o editor cometeu o erro de dizer que na obra “Odisséia” a feiticeira Circe e a deusa Calipso eram a mesma divindade. Um absurdo!
Deixando de lado os aspectos negativos da edição o que resta é um livro intrigante, reflexivo, profundo e desafiador. Um autêntico exemplo de obra prima e de superação intelectual. Nota 1000!!!
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
PARAISO PERDIDO (EDIÇAO BILINGUE)
Autor: Milton
JohnTradutor: JONAS, DANIEL
Ilustrador: DORE, GUSTAVE
EDITORA 34
Nº de Páginas: 896
ANO 2015

sexta-feira, 10 de março de 2017

AS AFINIDADES ELETIVAS


Edward e Charlotte são um casal da aristocracia alemã que vivem tranquilamente em uma gigantesca propriedade rural. Ambos se encarregam de realizar reformas na propriedade a fim de ressaltar suas belezas naturais e seus aspectos idílicos. Essa harmonia se vê ameaçada quando Edward decide convidar um amigo de infância – o Capitão Otto – para passar um período no local. Charlotte inicialmente discorda da decisão de Edward, mas logo em seguida concorda sob a condição de que ela possa convidar Otilie – uma jovem órfã e filha de sua melhor amiga – para morar com o casal.
A introdução de ambos as figuras humanas na vida de Charlotte e Edward faz com que um se apaixone pelo convidado do outro. A atração que eles passam a sentir é incontrolável desafiando e colocando em cheque a real natureza de ligação afetiva estabelecida pelo casal. É um enredo que explora o predomínio da paixão sobre o comportamento racional tendo por analogia o conceito químico de afinidade. Esse é o conflito que se estabelece entre os personagens e se desenvolve de forma lenta, reflexiva e poética. Seria pouco produtivo fazer qualquer tipo de comentário sobre o desfecho da obra então vamos às criticas.
Definitivamente é um texto que possui um momento próprio para ser plenamente assimilado. Não é uma obra com valor de entretenimento, portanto não se trata de uma leitura para os momentos de tédio, pois isso certamente ampliara os pontos negativos do texto. É uma obra que possui uma linguagem fácil de ser compreendida, mas difícil de ser trabalhada pelo leitor. Desconstruir suas camadas literárias pode ser bem exaustivo em alguns momentos porque quase todos os elementos que compõem a história são muito irreais, excessivamente bucólicos, romantizados e alegóricos.
Toda obra que trabalha sobre os sentimentos de seus personagens e não sobre um acontecimento qualquer, precisa ter competência suficiente para cativar o lado mais irracional do leitor, ou seja, deve ter uma densidade dramática muito bem pronunciada e é neste ponto que surge um dos pontos fracos da obra de Goethe que é a sutileza narrativa com a qual ele tenta trabalhar algo tão passional como a atração física.
Tudo é muito poético, os diálogos são sempre carregados de muita ternura, falta vigor em alguns momentos. O enredo vende a ideia de uma reviravolta na vida de um casal por meio da presença de duas outras pessoas. O problema e que os personagens são muito passionais apenas ao nível dos sentimentos, essa paixão nunca se reflete em seus comportamentos. Em nenhum momento fica a sensação de uma reviravolta ou a iminência de rompimento. Essa sutileza deixa a narrativa um pouco morna, porem imprime profundidade nos personagens a medida em que seus dramas são constantemente sufocados por um comportamento blasé.
Na segunda parte do texto surge aquilo que a obra tem de melhor que é a profundidade dramática de seus personagens. Essa fase é construída por meio de trechos do diário de Otilie, que são de longe os momentos de reflexão mais intensos e interessantes do texto. Existem duas grandes ironias na obra: a primeira é que os seus momentos de maior maturidade são assinalados pelas palavras da mais jovem entre os personagens. Naturalmente se espera que personagens mais velhos sejam mais profundos, no entanto aqui eles são mais rasos – com exceção de Charlotte.
A segunda ironia é que os personagens estão sempre buscando melhorar a aparência do local onde vivem, estão sempre buscando a beleza aparente das coisas sendo que a verdadeira beleza de tudo está nos sentimentos dos próprios personagens. O belo é aquilo que os toca de forma intensa e que não possui uma forma física definida. Ao serem incapazes de ocultar esse sentimento eles reafirmam o conceito de que é impossível se manter indiferente diante daquilo que possui algum valor.
Trata-se de uma ótima obra da literatura alemã que apesar de sua narrativa pouco fluida ainda assim preserva todos os elementos que definem um grande clássico.
AUTOR
TIAGO R.CARVALHO
Título original: DIE WAHLVERWANDTSCHAFTEN
Tradução: Tercio Redondo
Páginas: 328
Selo: Penguin Companhia

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