sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A ESTRADA DE VASSILI GROSSMAN


O ucraniano Vassili Semiônovitch Grossman nasceu em Berdítchev no dia 12 de dezembro de 1905 – ano da morte de Anton Tchekov - seu escritor favorito. Nascido em uma família de judeus, Grossman foi criado pela mãe após a separação de seus pais. Ela ganhava a vida como professora de francês, o que deu a Grossman uma boa fluência no idioma. Entre 1910 e 1912 morou na Suíça e em 1914 começou a cursar o ensino médio em Kiev. Em 1929 formou-se em Química pela Universidade Estatal de Moscou. Nessa época Grossman já estava fascinado pela literatura, porem seu pai, um engenheiro químico, incentivava o filho a buscar uma atividade mais solida do que as letras.
Grossman trabalhou como engenheiro de segurança em uma mina e como professor de química. Em 1931 foi diagnosticado com tuberculose. Mudou-se para Moscou e começou a trabalhar como engenheiro em uma fabrica de lápis. Nesse período ela já começava a ganhar a vida como escritor. Em 1934 seu conto “Na cidade de Berdítchev” foi publicado por uma prestigiada editora e rapidamente recebeu elogios de escritores consagrados como Issaac Bábel e Maksim Gorki.
No ano anterior ele havia se divorciado de sua primeira esposa, e em 1936 casou-se com Olga Mikhailovna, com a qual manteve um caso amoroso desde o ano anterior. Em 1938, logo após o auge do grande terror stalinista, Olga foi presa. Grossman assumiu a guarda de seus dois filhos e chegou a enviar cartas a Nikolai Yejov – chefe do NKVD, a policia política soviética - defendendo a esposa. Ela seria libertada ainda naquele ano. Sua vida seria conturbada, o pior ainda estava por vir. Aquele século marcaria sua vida profundamente, e sua escrita seria o reflexo disso.
Vassili Grossman
Lançado recentemente pela editora Alfaguara a obra “A estrada” reúne contos, cartas e relatos jornalísticos intercalados por textos sobre a biografia de Grossman. Inicialmente estranhei um pouco essa mistura de textos literários com textos de não ficção, no entanto, a obra possuía uma divisão bastante didática.
Dividida em cinco partes a obra abrange textos que circunscrevem toda a vida do autor. A primeira parte começa com uma introdução biográfica, escrita por Robert Chandler e Yury Bit-Yunan, e inclui três contos escritos ao longo da década de 1930. O primeiro deles é “Na cidade de Berdítchev” que se passa durante a guerra Russo-Polonesa (1919-1921) e conta a história de Vavílova, uma intempestiva comissária do exercito vermelho irritada por seu afastamento dos combates por causa de sua gravidez.
Vavílova enxergava o filho em sua barriga como uma doença e na tentativa de “curar” o seu estado físico havia recorrido a cavalgadas, esforço físico carregando toras de pinheiro, ingestão de iodo e chá de ervas. Apesar dos seus esforços o filho continuava crescendo em seu ventre como uma força irrefreável da natureza. O conto termina com Vavílova abandonando o filho recém nascido para se juntar ao exercito vermelho. Mais um órfão criado pelas obrigações para com o Estado soviético. O contexto remete imediatamente a obra de Issaac Bábel, “Exercito de cavalaria”.
Na segunda parte estão quatro textos - dois contos e dois de não ficção – escritos durante a segunda guerra mundial e nos primeiros anos do pós-guerra. Quando o conflito bateu as portas da União Soviética, em 22 de junho de 1941, Grossman tinha apenas 35 anos, mas foi classificado como inapto para o combate. Enviado ao front como correspondente de guerra ele redigiu textos impressionantes sobre o que testemunhou. E nesta segunda parte que estão os dois textos que mais me impressionaram: “O inferno de Treblinka” e “A madona sistina”.
“O inferno de Treblinka” é indescritivelmente apavorante. A descrição metódica dos métodos empregados no campo de extermínio de Treblinka, na Polônia, desde a chegada dos prisioneiros, amontoados em vagões de trem, até a incineração dos corpos chega a ser difícil de ler. Por vários anos me dediquei a ler livros sobre o Holocausto e nas muitas obras que li vi o pior da humanidade, vi o que as pessoas são capazes de fazer umas as outras. Cheguei ao ponto de achar que não me impressionaria com mais nada em relação ao tema, mas quando li o texto de Grossman percebi que o Holocausto ainda me reservava uma serie de surpresas negativas.
Os métodos de coerção psicológica e dominação da vontade individual, a brutalidade gratuita dos guardas que se divertiam atirando nas pessoas, o que acontecia dentro das câmaras de gás, filas de pessoas nuas sendo atacadas por cães treinados, tudo isso é descrito de uma forma tão viva que provoca arrepios.
Os homens da SS foram especialmente cruéis com aqueles que vinham da rebelião do gueto de Varsóvia. Separaram do grupo as mulheres e crianças, levando-as não para as câmaras de gás, mas para os locais de incineração de cadáveres. Mães enlouquecidas de terror eram forçadas a conduzir os filhos para o meio das grelhas incandescentes, onde milhares de corpos mortos retorciam-se nas chamas e na fumaça, onde cadáveres se agitavam e crispavam como se estivessem vivos, onde as barrigas de defuntas grávidas rebentavam com o calor, e os filhos mortos antes de nascer ardiam no ventre aberto das mães. (...) As crianças agarravam as mães com gritos ensandecidos: “Mamãe, o que vai acontecer conosco, vamos ser queimados?” Nem Dante viu um quadro assim em seu inferno.
“A madona sistina” foi talvez o texto que mais me surpreendeu. Ao vislumbrar a pintura de Rafael - gênio do renascimento italiano – exposta temporariamente em Moscou em 1955, Grossman mergulhou no turbilhão do seu passado e descreveu a imagem como um retrato da afetividade materna em meio a tragédia de seu tempo. Viu no rosto da criança uma maturidade mais expressiva que no rosto da mãe e lembrou-se das cenas lamentáveis dos campos de extermínio, onde crianças consolavam suas mães em prantos diante das câmaras de gás. “Seremos vingados”, diziam aquelas pequenas almas ainda presas aos seus corpos prestes a serem queimados como lixo. Na serenidade do rosto da madona viu a aceitação do destino que se desnudava diante dos olhos. “O que é humano no homem vai ao encontro de seu destino, e, para cada época, há um destino especifico, diferente do da época precedente. O que há em comum entre esses destinos é que eles são sempre duros.” A bela representação artística de Rafael era o retrato das vitimas do sangrento século XX.
"A Madona sistina" de Rafael
A terceira parte possui seis contos, dentre os quais está “A estrada”, conto que dá nome a coletânea. Neste texto o personagem principal é uma mula chamada Giu que servia ao exercito italiano, durante a invasão da União soviética, transportando canhões de artilharia. Diante da imensidão do território russo, do cansaço que tomava conta de suas quatro patas, da lama, da chuva e do frio, Giu agia com indiferença as adversidades. “Para Giu, ser ou não ser tornara-se indiferente; era como se uma mula tivesse resolvido o dilema de Hamlet.”
Os dois contos que mais gostei da terceira parte são “O alce” e “A cachorra”. No primeiro Grossman volta a buscar o conceito de amor materno através do comportamento de um alce, cuja cabeça adorna a casa do homem moribundo que o matou. Em “A cachorra” ele conta a história de um vira-lata, apanhada nas ruas de Moscou, que é enviada ao espaço. Aqui ele aborda a questão da perda da inocência da ciência, uma das maiores calamidades da era moderna, pois a tecnologia deu nova dimensão ao conceito de violência. Grossman contrasta o comportamento inocente da pobre cachorrinha com as ambições cientificas do período:
Sua infância fora sem teto e sem comida, mas a infância é a época mais feliz da vida. Especialmente boa foi a primavera, os dias de maio na periferia da cidade. O cheiro de terra e grama fresca enchia a alma de felicidade. A sensação de alegria era aguda, quase insuportável; quase não tinha vontade de comer, de tão feliz que estava. (...) Parava com as patas dianteiras na frente de um dente-de-leão e, com alegre voz infantil, convidava a flor a participar da correria (...)
Na quarta parte estão reunidas as duas cartas de despedida que Grossman escreveu a sua mãe, Iekaterina Savêlievna, após sua morte. A primeira foi escrita em 15 de setembro de 1950 – data do nono aniversario de morte de Iekaterina. A segunda foi escrita em 15 de setembro de 1961, vinte anos após a morte de sua mãe. Alguns textos também estão presentes na obra “Um escritor na guerra”, lançado pela editora Objetiva, porem, os textos presentes em “A estrada” estão mais completos.
Na última parte estão reunidos algumas cartas e dados biográfico do autor, bem como o conto “Descanso eterno”, no qual Grossman conceitua a morte:
Não é possível ver, nem observar a alma do morto, seu amor e pesar nos túmulos, nas inscrições das lapides, nas flores, nos montículos das sepulturas. A pedra, a musica, o pranto em sua memória, as orações são importantes para transmitir seus mistérios. Diante do caráter sagrado desse mistério silencioso, são desprezíveis todos os tambores e trombones do Estado, a sabedoria da historia, a pedra dos monumentos, o clamor das palavras e as orações memoriais. Eis a morte.
Trata-se de um excelente livro que trás em suas paginas as marcas da genialidade literária ucraniana. Vale muito a pena ser lido!
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Autor: GROSSMAN, VASSILI
Tradutor: PERPETUO, IRINEU FRANCO
Editora: ALFAGUARA BRASIL
Ano de Edição: 2015
Nº de Páginas: 336

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O PODER DO VERDE


Na mitologia egípcia Osíris – deus que representa a fertilidade, o renascimento e a vida, é reconhecido nos hieróglifos por uma de suas características mais evidentes: a cor verde. O verde sempre foi uma cor associada à vida, naturalmente responsável por invocar a imagem da natureza. No extremo oposto está o vermelho: cor símbolo da paixão, do pathos – palavra grega que significa sofrimento –, do amor, forma singular de obsessão por outra pessoa. Vermelho é a cor do sangue... vermelho é a cor da morte.
O leitor do presente texto não deve ter deixado de estranhar o fato de o titulo do texto está em desacordo com a imagem de um quadrado vermelho. Não se trata de daltonismo, mas de um simples experimento: se observar por alguns segundos, sem desviar o olhar, para a imagem acima e em seguida foca a visão em uma parede branca, assim que você começar a piscar verá diante de seus olhos o mesmo quadrado, porem com uma cor verde. Até aqui nada de assustador, trata-se apenas de um fenômeno desencadeado por cores complementares e perfeitamente explicado pela óptica. A experiência tola que descrevi acima serve para explicar uma reflexão filosófica que tive há algum tempo: a de que a imagem da vida é também a imagem da morte!
Aquele que por muito tempo permanece diante da imagem da morte começa a buscar, inconscientemente, a imagem da vida. Cirurgiões que passam horas olhando para o sangue vermelho de seus pacientes passam a sofrer distúrbios visuais e enxergar manchas verdes azuladas. É por isso que os lençóis e roupas usadas pelos médicos em salas de cirurgia são azuis ou, como na maioria dos casos, verdes. A dimensão subjetiva entre a cor que simboliza a vida e a cor que simboliza a morte parece ter profunda influência nos mecanismos que levaram o homem a associar ambas as cores aos extremos opostos que caracterizam a eterna contingência felicidade-tristeza. Criamos nossos próprios padrões de beleza, fazemos generalizações arbitrarias da realidade, retalhamos, reduzimos ou ampliamos os significados dessa mesma realidade obedecendo a mecanismos inconscientes que na maioria dos casos são incapazes de compreender seu papel num primeiro momento. A associação entre um fenômeno e o seu significado se opera de forma inconsciente.
Outra forma de expressão, puramente particular, que se constrói de forma inconsciente é a inspiração artística. Os maiores nomes das artes plásticas e da literatura que marcaram o século XIX construíram toda a sua filosofia criativa a partir de uma bebida famosa, cuja cor lhe renderia inúmeros apelidos como “musa dos olhos verdes” ou simplesmente “fada verde”. Trata-se do polemico absinto. Cinco da tarde era a chamada de “hora verde” pelos parisienses da belle epoque. Era exatamente nessa hora que o consumo de absinto atingia o auge dando inicio a rodada de prazeres que se estendia por toda a noite.
O poder do absinto se devia ao seu elevado teor alcoólico (70%) é a presença de uma substancia estimulante que provocava uma forma leve de alucinação: a Turjona. Seu nome vem do grego “apsinthion” que significa “intragável” devido ao gosto fortemente amargo. A Artemísia, planta utilizada em sua fabricação, era muito utilizada na antiguidade para combater febres, principalmente as provocadas pela Malaria – doença que assolou os egípcios nos tempos dos faraós. Uma ironia a parte, pois o chá de Artemísia empregado pelos egípcios possuía a mesma coloração verde de seu deus Osíris.
Na Roma antiga era comum dar aos vencedores das corridas de bigas uma infusão da erva de Artemísia para mostrar que a vitoria não ocorria sem certa dose de amargura. Aqui mais uma vez o caráter filosófico do absinto, e portanto do verde, reaparece: vitoria como resultado do sofrimento assim como a morte é resultado da vida.
Não se sabe ao certo quando o absinto, bebida como atualmente é conhecida, foi inventada. Acredita se que tenha sido criada no século XVIII por volta de 1792. Henri Louis Pernoud, famoso fabricante de bebidas, construiu uma fabrica para produção de absinto em Pontarlier, próximo a fronteira com a Suíça. Em 1896 a fabrica chegava a produzir 125 mil litros de absinto por dia. Em 1910 cerca de 36 milhões de litros de absinto foram consumidos em toda a França. Vale lembrar que o absinto francês do século XIX era infinitamente mais forte que o atual.
Os parisienses recorriam a inúmeras substâncias entorpecentes e ou alucinógenas. A morfina era muito utilizada pelas mulheres, o éter era um recurso mais barato para aqueles dispostos a embarcar numa forma única de transcendência química depois de uma breve cheirada. Em alguns locais era possível comprar morango em caldas de éter. Não é sem motivo que muitos incêndios provocados por vapores de éter ocorreram durante o século XIX.
O absinto contem grandes quantidades de Turjona, um terpeno tóxico que provoca convulsões decorrentes de uma super estimulação do sistema nervoso autônomo. O acido Gamma-aminobutirico é uma substancia que regula as transmissões entre as sinapses neurais e a Turjona, presente no absinto, inibe a ação do acido Gamma-aminobutirico provocando um aumento das transmissões sinápticas desencadeando tremores e excitação. Caso seja consumido associado a algum outro estimulante, como a Nicotina, o processo pode levar a contrações musculares e convulsões. O absinto já é classificado como Speedball - substancia formada pela combinação entre estimulante e entorpecente. A Turjona age como estimulante e o álcool como entorpecente. Curiosamente o álcool acaba impedindo que o consumidor ingira uma dose letal de Turjona.
Na mais famosa obra de Robert Louis Stevenson, “O medico e o monstro”, o Dr. Jekyll cria uma formula capaz de separar o bem do mal: sais brancos eram adicionados a uma substancia com odor de éter e aos poucos a mistura assumia uma coloração verde. Beber aquilo libertava sua alma do seu alter ego, representado pela figura do Sr. Hyde. Jekyll sentia uma necessidade incontrolável de permitir que os rugidos reprimidos de sua alma se libertassem. Edward Hyde, um demônio do inconsciente, lutava para se sobrepor a Jekyll, e este, fatigado pelo esforço de reprimir seu pólo pulsional, se rendia ao seu vicio.
Jekyll serve como exemplo literário para um fenômeno químico psicológico da modernidade: o dependente químico não se torna escravo de uma substância, mas da personalidade que esta mesma substancia produz. Um viciado em morfina se torna dependente do seu estado sob o efeito analgésico da droga, ou seja, da ausência da dor e não da substancia química em si. “Os poderes de Hyde pareciam haver crescido com a debilidade de Jekyll” – escreveu Stevenson em sua obra. De fato o vicio se torna mais intenso a medida que debilita sua vitima. Em alguns momentos a descrição de Jekyll de suas crise que antecediam as recaídas se assemelham ao delirium tremens observado em vitimas do alcoolismo:
“Fui acometido de uma vertigem, uma náusea horrível e um tremor mortal. Essas sensações passaram, me deixando a beira de um desmaio; depois, quando também a tonteira se dissipou, comecei a tomar consciência de uma mudança na natureza de meus pensamentos, uma maior audácia, em desprezo pelo perigo, uma dissolução dos laços do dever.”
Outro ponto levantado pela obra de Stevenson, embora de forma bastante sutil, e o do aspecto benéfico e ao mesmo tempo nocivo da química. A mesma substancia capaz de provocar dor também a alivia. A Heroína, por exemplo, é um dos mais poderosos anestésicos já produzidos pelo homem! Quem poderia imaginar que um remédio tão “heróico” se tornaria um “vilão”? Infelizmente, conforme já foi dito por Joe Schawarcz e reforçado no conto de Stevenson, as pessoas tendem a se concentrar nos aspectos negativos durante suas avaliações deixando de lado inúmeros aspectos benéficos. Os monstros nascem amparados por aqueles que diante da luz somente enxergam sombras.
Por que Stevenson descreveria a substancia criada por Jekyll como verde pálida? Seria uma referencia ao absinto? Seria apenas um adorno estético sem nenhum significado subjacente? Na época o verde era considerado uma cor estética, pois combinava com as cores que predominavam em meio a decoração da década de 1890. Seria o “sal branco” uma referência ao açúcar utilizado pelos adeptos do absinto? Aqui já embarcamos no terreno falho da conjectura da criação literária.
Voltando ao ponto inicialmente exposto no texto, isto é a relação entre vida e morte, fica claro que a vida urbana é plena de sensações para aqueles que se permitem embarcar em variados níveis de transcendência; o perigo, neste caso, é o principal combustível e o verde a mais inebriante das cores. Existe uma frase, utilizada em referencia ao absinto, que descreve perfeitamente o paradoxo da filosofia da vida como reflexo da morte: “mata, mas te faz viver”.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO
Para saber mais sobre a historia do absinto:
ABSINTO - UMA HISTORIA CULTURAL
Autor: BAKER, PHIL
Editora: NOVA ALEXANDRIA
Ano: 2010
Nº de Páginas: 228

terça-feira, 2 de agosto de 2016

A DECADÊNCIA DEMOCRÁTICA E A INÉRCIA SOCIAL DO VOTO


O século XX sinalizou a brusca incorporação de mecanismos sociais que solaparam a crença no liberalismo. O enfraquecimento das instituições e dos valores jurídicos liberais, que se desenvolveram ao longo de todo o século anterior e cuja solidez era amplamente reafirmada, consistiu talvez no primeiro grande golpe na atmosfera positivista da virada do século. A ideia de um governo representativo no lugar de um absoluto se apresentava com uma lógica cujos mecanismos pareciam já consolidados e aceitos pela ampla maioria, excluindo-se e claro os mais radicais defensores do centralismo político que pareciam ver pouca ou nenhuma vantagem na ampliação das bases do poder.
A lei parecia ter encontrado o perfeito tom jurídico que lhe permitisse funcionar como garantia dos valores sociais constitucionalizados. Excluindo-se a atmosfera de tensão política característica da virada do século, nada mais parecia indicar, pelo menos em contornos bem nítidos, que os métodos de governo autoritário voltariam a ganhar espaço. De certa forma o aprimoramento dos diversos ramos da ciência, ou seja, dos métodos políticos, econômicos e sociais deram forma a um otimismo que praticamente subestimou o poder devastador que o nacionalismo teria. A partir da década de 1920 a civilização liberal começou a desmoronar diante da associação detonante entre nacionalismo e militarismo. Ironicamente o golpe desferido nesse período contra os valores liberais veio da direita política e não da esquerda. O movimento trabalhista já era de fato um significativo e poderoso recurso das massas, porem os marxistas social-democratas se ateram aos valores democráticos e os comunistas ainda eram uma minoria dispersa. Embora se temesse uma onda de revoltas desencadeadas pelos comunistas o golpe não viria através da foice e do martelo. Nos vinte anos que marcaram a desfragmentação do liberalismo nenhum governo liberal-democratico caiu por meio de movimentos da esquerda.
Com pouca freqüência foi levantado o papel inegável da direita como desencadeadora dos métodos autoritários de governo do inicio do século XX. A alegação recorrente de que a linha anti democrática adotada pela direita seria uma resposta ao movimento da esquerda é falha por desconsiderar o elemento humano e sua tendência de canalizar as experiências pessoais e traduzi-las a termos políticos. A maioria dos lideres da direita radical foram moldados nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Foi ali, na lama das trincheiras que o ultra nacionalismo característico de sua linguagem política dos anos posteriores nasceu. A primeira grande guerra forneceu a base moral para o fanatismo político que arrasou a primeira metade do século XX.
Um fato interessante e que a direita não direcionou seu ódio apenas aos comunistas, mas a todo movimento contrario ao estatus quo da sociedade. Defendiam o conservadorismo adotando métodos radicais. A perda gradual de poder representativo de um Estado abre caminho para a explosão de diversos núcleos de opinião. Indivíduos incapazes de avaliar corretamente o contexto político do momento passam a construir generalizações que pouco a pouco alimentam as desconfianças e expõem os limites da democracia.
O grande drama da democracia moderna não são suas falhas como doutrina, mas seus métodos: sua base se constrói sobre os elementos da burocracia representativa, cujos membros não possuem credibilidade junto à opinião publica. O voto não mais cumpre o seu papel como legitimador do poder público. Atualmente o voto é mais uma inércia social do que um ato de cidadania.
AUTOR
TIAGO RODRIGUES CARVALHO

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